Cultura

'Trump é a última pessoa que leria meu livro', diz Bernardine Evaristo, atração da Flip Virtual

Vencedora do Booker Prize, que lança 'Garota, mulher, outras', fará live de abertura do evento
a escritora britânica bernardine evaristo, que abre a flip virtual no próximo dia 3 de dezembro Foto: divulgação / Divulgação
a escritora britânica bernardine evaristo, que abre a flip virtual no próximo dia 3 de dezembro Foto: divulgação / Divulgação

A britânica Bernardine Evaristo se define como uma “ativista literária”. A própria concepção de seu “Garota, mulher, outras” , que chega ao Brasil pela Companhia das Letras, é um reflexo desse ativismo. Para compensar o que ela via como um déficit de representatividade na literatura de seu país, ela juntou doze co-protagonistas predominantemente negras em um mesmo romance. Com este tour de force , a escritora de origem nigeriana, nascida nos arredores de Londres, tornou-se em 2019 a primeira mulher negra a vencer o Man Booker Prize, o mais importante prêmio literário de língua inglesa.

Na próxima quinta-feira, Evaristo participa da mesa de abertura da Flip Virtual, em uma live às 18h, com mediação de Stephanie Borges. (Veja a programação completa aqui) .

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— O que eu entendo por ativista literária é a ideia de colocar projetos inclusivos nas artes, para que elas se tornem mais abrangentes — diz Evaristo, em entrevista via videoconferência. — Neste romance eu queria juntar o máximo possível de mulheres negras, porque estamos ausentes na ficção britânica. Queria incluir diferentes tipos de mulheres em um mesmo romance para explodir os estereótipos e reequilibrar a nossa invisibilidade.

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O painel de “Garota, mulher, outras” é amplo, com personagens de diferentes idades, classes, sexualidades, religiões e origens. A pedra de toque desta colcha de retalhos é Amma, uma dramaturga homossexual prestes a estrear sua peça no National Theater. À medida que o livro avança, surgem outros perfis, como Yazz, a filha de 19 anos de Amma; Megan/Morgan, a professora trans de Yazz; ou ainda Carole, uma mulher de negócios que foi estuprada quando adolescente.

Capa do livro 'Garota, mulher, outras', de Bernardine Evaristo Foto: Reprodução
Capa do livro 'Garota, mulher, outras', de Bernardine Evaristo Foto: Reprodução

De alguma forma, essas vozes se conectam na Londres pós-Brexit, onde todas buscam uma perspectiva para existir. A leitura polifônica não se limita à diversidade do elenco, e se estende à própria dicção peculiar de Evaristo, que mistura versos livres e não usa ponto final.

A ideia inicial da autora chegava a ser quixotesca: juntar mil protagonistas. Com o tempo, ela foi revendo a meta, primeiro reduzindo o número para 200, depois para os 12 atuais. Ainda assim, o número é suficiente para criar intersecções próprias do romance polifônico. As mulheres do livro refletem sobre os diferentes graus de luta e dificuldades na sociedade, reconhecendo suas vivências distintas. Algumas, inclusive, se descobrem menos ou mais “privilegiadas”.

Ao criar estas camadas e nuances para falar de diferentes tipos de opressão, o romance encontra pontos de contato com o pensamento de uma intelectual admirada por Evaristo, a americana Roxane Gay, que popularizou o conceito de “má feminista” (em resumo, a ideia de que não é preciso ser uma feminista perfeita para se guiar pelo feminismo).

— Quando comecei a escrever o livro, não pensava na palavra “opressão” ou em níveis de privilégio — lembra Evaristo.—Mas eu precisava criar essas personagens reais e complexas. E, por causa dos seus históricos, suas lutas podem ser diferentes também. Nisso, alguém pode dizer que uma delas é privilegiada por vir da classe média ou por ser dona de terras. Não é como eu vejo, mas é possível interpretar assim.

A escritora Bernardine Evaristo, autora de 'Garota, mulher, outras', obra vencedora do Man Booker Prize 2019 Foto: TOLGA AKMEN / AFP
A escritora Bernardine Evaristo, autora de 'Garota, mulher, outras', obra vencedora do Man Booker Prize 2019 Foto: TOLGA AKMEN / AFP

O que não significa que o romance faça uma “olimpíada da opressão”, pondera Evaristo. A questão, no fim, é sobre “estar juntas”.

— Muitos que não leram, descrevem como um livro sobre sofrimento, quando na verdade é sobre a complexidade da vida dessas mulheres — diz Evaristo. — É uma celebração sobre as diferentes maneiras de ser feminista, de ser negra, de ter uma sexualidade ou uma agenda política.

Além de vencer o Booker Prize, “Garota, mulher, outras” apareceu em diversas listas de melhores livros de 2019, incluindo a do ex-presidente americano Barack Obama. Será que o mesmo aconteceria com Donald Trump, atual ocupante do cargo? Evaristo esboça um sorriso ao ouvir a pergunta.

— O Donald Trump consegue ler? Pelo que eu soube, ele sequer lê os relatórios oficiais do seu gabinete. Ele é a última pessoa na terra que pegaria meu livro para ler. Para começar, olha as mulheres em volta dele. São todas brancas, com o mesmo tipo de visual. As minhas são negras. Só isso já elimina a possibilidade.

Já o premiê britânico, Boris Johnson, talvez lesse seu livro “se fosse obrigado”, acredita Evaristo.

— Ele leria só para dar a impressão de ser espirituoso. O Boris é ruim, mas o Trump é louco.

Destaques da Flip Virtual

Quando pediu demissão da Flip, Fernanda Diamant afirmou que planejava que pelo menos metade dos autores convidados para a festa deste ano fossem negros. A Flip bateu a meta estipulada pela ex-curadora. Dos 22 convidados, 11 são negros, um é indígena (a poeta Márcia Kambeba), e três são transexuais: (o poeta americano Danez Smith, o filósofo espanhol Paul B. Preciado e a artista visual potiguar Jota Mombaça).

No dia 5, às 20h30, Preciado conversa com o compositor Caetano Veloso na mesa “Transições”. Smith e Mombaça participam da mesa “Vocigrafias insurgentes”, no dia 6, às 18h. Kambeba conversa com o americano Jonathan Safran Foer no dia 4, às 16h.

As discussões raciais devem aparecer em mesas como “Diáspora” (3/12, às 18), com Bernardine Evaristo e Stephanie Borges (tradutora especializada em autoras negras); “Ancestralidades” (5/12, às 18h), com o nigeriano Chigozie Obioma e o baiano Itamar Vieira Junior, ambos autores de romances que resgatam tradições religiosas africanas; e “Batidas”, com a americana Regina Porter e o carioca-gaúcho Jeferson Tenório.

Outros destaques são a mesa “Eileen para presidente!” (4/12, às 18h), conversa da poeta americana Eileen Myles com as poetas e tradutoras brasileiras Bruna Beber e Mariana Ruggieri; e a aula da antropóloga Lilia Mortiz Schwarcz sobre o autoritarismo brasileiro (5/12, ás 16h).

Este ano, a festa é gratuita e as mesas serão transmitidas ao vivo no site, no Facebook e no canal da Flip no Youtube.