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Cultura

A world music virou global music. E o que isso quer dizer?

Decisão do Grammy de aposentar o termo que catapultou artistas de todo o mundo, especialmente nos anos 1980 e 1990 levanta a questão: categoria ainda faz sentido na realidade de hoje?
O cantor Gilberto Gil em cena do documentário "Refavela 40", de Mini Kerti Foto: Reprodução
O cantor Gilberto Gil em cena do documentário "Refavela 40", de Mini Kerti Foto: Reprodução

RIO  — Primeiro brasileiro a ganhar um Grammy de melhor álbum de world music (em 1993, por “Brasileiro”), o pianista Sergio Mendes não demorou a assimilar o novo nome que a categoria passou a ter após 29 anos de existência: global music. Por Zoom, de Los Angeles, onde mora desde 1964, o músico disse achar até “mais musical” o termo que a Recording Academy decidiu adotar no começo deste mês para se referir à música feita fora dos padrões americanos ou europeus. E que a indústria fonográfica americana usará a partir de agora.

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— A indústria gosta de colocar rótulos nas coisas. No início da minha carreira, havia uma categoria na (parada de sucessos da revista) Billboard chamada easy listening. Os meus hits dos anos 1960 e 70, “Fool on the hill”, “The look of love”, isso tudo foi categorizado como easy listening: algo que não era música de elevador mas também não era rock’n’roll — explica ele, que já em 1972 teve problemas com a gravadora A&M ao lançar o disco “Primal roots”, cheio de cânticos de candomblé. — Eles me perguntavam “como eu vou vender esse disco?”. E eu: “Isso é problema de vocês!”

Com a emergência da world music, as aflições de Mendes terminaram:

O vencedor do Grammy de Melhor ábum de world music de 1993, Sérgio Mendes Foto: Divulgação
O vencedor do Grammy de Melhor ábum de world music de 1993, Sérgio Mendes Foto: Divulgação

— No “Brasileiro”, eu quis fazer um disco totalmente diferente. Fui ao Brasil e gravei com uma escola de samba inteira. O pessoal aqui e no mundo gostou muito. A gravadora liberou o orçamento e me deixou fazer o que eu quisesse. Acho que esse Grammy fez o pessoal prestar mais atenção a coisas que não eram em inglês, com ritmos que não só o rock. Ele abriu uma porta para a diversidade cultural.

Primeiro foi o Oscar

Mas chegou a hora de mudar, entendeu assim a Recording Academy. E fez isso antes da próxima premiação global, marcada para 21 de janeiro. Influenciados pela decisão do Oscar, em abril do ano passado, de trocar o nome da categoria de Filme de Língua Estrangeira para Filme Internacional , os organizadores do Grammy argumentaram, em comunicado, que global music era um termo “mais relevante, moderno e inclusivo” para melhor celebrar “o escopo atual da música em todo o mundo”: “A mudança simboliza um afastamento das conotações de colonialismo, folk e ‘não americano’ que o termo anterior incorporou enquanto se adaptava às atuais tendências de escuta e evolução cultural entre as diversas comunidades que pode representar.”

— (Essa mudança) é realmente uma piada, e boba — ataca Yale Evelev, presidente da Luaka Bop, gravadora dedicada ao pop contemporâneo dos quatro cantos do planeta e fundada em 1988 pelo cantor e compositor David Byrne , que em 1999, num artigo para o “New York Times”, descascou o termo world music como uma forma de relegar toda essa música ao reino do exótico, do “bonito mas irrelevante”. — Hoje em dia, com o mundo mais plano, todo mundo pega um vírus, todo mundo pode receber um e-mail traduzido em seu próprio idioma, pode assistir aos mesmos vídeos no YouTube de Tim Maia ou Michael Jackson, seguir Bolsonaro ou Trump (ou Biden) ou fazer música em seus quartos usando ritmos baseados no tecnobrega, ou no techno de Detroit. Essas distinções de música global ou mundial, de música de outros povos, são muito do século XX.

Por outro lado, Gilberto Gil, ganhador de dois Grammys de álbum de world music, em 1999 e 2006, diz se lembrar das problematizações sobre o uso do termo para designar a categoria da premiação. E vê avanços no “global”:

— A queixa seria o viés colonialista da expressão — resume ele. — Eu mesmo escrevi um artigo para uma revista americana, em que defendia a adoção de uma denominação mais abrangente, que contemplaria todos os tipos e gêneros de música popular internacional, independentemente da sua origem. Uma categoria que atenuasse o domínio e a hegemonia do pop americano e europeu. Uma categoria que reconhecesse os gêneros internacionais que se fundiam e já se confundiam mesmo, no consumo mundial de música pop. Penso que é essa iniciativa do Grammy agora: um prêmio internacional para a música produzida e consumida em todo o planeta.

A periferia invadiu o centro

Em tempos de domínio do streaming, quando astros da “periferia” do mundo, como o porto-riquenho Luís Fonsi, de “Despacito” (até o começo do mês o vídeo mais visto no YouTube de todos os tempos , com 7 bilhões de execuções), o k-pop da Coreia do Su l (de grupos como BTS e Blackpink), a brasileira Anitta e o nigeriano Burna Boy , vêm arrombando o mainstream, era inevitável que a indústria americana ajustasse sua relação simbólica com o resto do mundo.

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No entanto, para o sociólogo Michel Nicolau Netto, autor do livro “O discurso da diversidade e a world music” (2014), a mudança de world para global na categoria do Grammy “trata do termo, mas não do problema”.

— A primeira grande crítica que a world music sofreu foi por dividir de maneira arbitrária o que era música ocidental e música não ocidental — discorre Michel, usando a palavra ocidental como sinônimo de países dominantes do primeiro mundo, como Estados Unidos e boa parte das nações europeias. — E esse “não ocidental” começou a ser muito marcado por uma visão tradicional, como se a world music não pudesse ser moderna. Isso restringiu as carreiras de uma série de artistas que não eram ingleses ou americanos, como Gilberto Gil e Milton Nascimento (outro agraciado com Grammy de melhor álbum de world music). Para mim, se a mudança do termo deveria ser feita para zerar todas essas restrições. Mas o “global” continua muito baseado nos mesmos pressupostos, de ocidental e não ocidental. Se você realmente quer desfazer essa separação, tem que acabar com essas categorias.

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Cantora brasileira que gravou parte de seu novo álbum, “Bom mesmo é estar debaixo d’água” no Quênia, com músicos africanos, Luedji Luna também acredita que apenas mudar o nome de world music para global music e a categoria permanecer a mesma, no sentido de englobar os mesmos artistas de sempre, não adianta.

A cantora e compositora Luedji Luna Foto: Divulgação
A cantora e compositora Luedji Luna Foto: Divulgação

— Eu acho que essa classificação não faz sentido porque é muito difícil categorizar música. Existem os estilos musicais, ok, mas seja world ou global, eles vêm de um lugar muito estereotipado — acredita. — A música urbana, o rap, existe no mundo todo e é world music pra mim, é global music pra mim (mas no Grammy não é). Tem pop no mundo todo e no entanto ele não entra nessa categoria... Na verdade, a música dialoga muito bem com qualquer indivíduo, de qualquer lugar do mundo, pra ser enquadrada numa categoria.

O músico e ex-ministro da Cultura de Cabo Verde, Mario Lúcio Foto: Reprodução / Reprodução
O músico e ex-ministro da Cultura de Cabo Verde, Mario Lúcio Foto: Reprodução / Reprodução

A velha world music, porém, tem lá os seus defensores, entre eles o cabo-verdiano Mário Lúcio , que fez carreira como cantor da música do mundo e foi ministro da Cultura de seu país entre 2011 e 2016.

— World music nada mais é do que uma tradução de musique du monde, um movimento surgido na França, com a editora Mélodie, que lançou discos do Manu Dibango, de Salif Keita, Ray Lema, Youssou N’Dour e, mais tarde, da Cesaria Évora. Um movimento no qual os Estados Unidos não tiveram participação — acusa ele, para quem global music implica em uma ideia diferente da que levou à criação da musique du monde: — O que se quer é criar um mercado global, e rápido. E ali têm que entrar as várias categorias que estão sem espaço dentro da própria world music. Tem que fazer Beyoncé à la Afrique, Rihanna à sul-africana, Michael Jackson à marroquina... só espero que, apesar disso, a world music continue com seu velho espírito de música genuína.