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Cultura literatura

70 anos sem George Orwell: 'nunca houve tanto desprezo pela verdade', diz especialista no escritor

Jornalista britânico Dorian Lynskey fala sobre a recepção do clássico distópico '1984', tema de seu novo livro
O ator John Hurt em cena do filme '1984', de Michael Radford, baseado no livro de George Orwell Foto: Divulgação
O ator John Hurt em cena do filme '1984', de Michael Radford, baseado no livro de George Orwell Foto: Divulgação

SÃO PAULO – "Não é um livro em que eu apostaria como sucesso de vendas”, escreveu George Orwell a seu editor, Fred Warburg, em dezembro de 1948. Orwell se referia a “ 1984 ”, distopia publicada em meados do ano seguinte — e sete meses antes de sua morte, em 21 de janeiro de 1950, há exatos 70 anos. Ao contrário do que suspeitava seu autor, “1984” frequenta até hoje as listas de mais vendidos.

Orwell já vendeu mais de 100 milhões de livros em cerca de 50 idiomas. Historicamente, a procura por seus livros tende a aumentar em tempos de turbulência política, e ano passado, no Brasil, “ A revolução dos bichos ” e “1984” foram o sétimo e o décimo livros de ficção mais vendidos, segundo o site “Publishnews”. Lançada em dezembro pela Companhia das Letras, a edição de luxo de “1984” já vendeu 3 mil exemplares.

O escritor britânico George Orwell, autor de "1984" e "A revolução dos bichos" Foto: Divulgação
O escritor britânico George Orwell, autor de "1984" e "A revolução dos bichos" Foto: Divulgação

Virou HQ: 'A revolução dos bichos’ ganha versão em quadrinhos

E vem mais por aí. Nos próximos meses, a Companhia lança uma edição de luxo de “A revolução dos bichos”, “1984” em quadrinhos e “O Ministério da Verdade: uma biografia de ‘1984’”. Neste livro, o jornalista britânico Dorian Lynskey investiga a recepção do livro que popularizou a expressão “Big Brother” e como a passagem de Orwell nas trincheiras da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) ajudou a transformá-lo em um militante da verdade. (O Ministério da Verdade, aliás, é a instituição responsável pela propaganda e pelo revisionismo histórico em Oceânia, onde se passa “1984”).

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Em entrevista por e-mail ao GLOBO, Lynskey disse que a principal lição de Orwell é o compromisso com a honestidade.

O jornalista britânico Dorian Lynskey, autor de "O Ministério da Verdade: uma biografia de '1984'" Foto: Alexandra Dao / Divulgação
O jornalista britânico Dorian Lynskey, autor de "O Ministério da Verdade: uma biografia de '1984'" Foto: Alexandra Dao / Divulgação

Por que escrever uma biografia de “1984” e não do próprio autor do livro, George Orwell?

Em 2016, comecei a me interessar pela trajetória deste gênero literário específico, a ficção distópica. Foi quando me dei conta de que, ao contar uma biografia de “1984”, eu podia, de uma vez só, lançar um novo olhar sobre a vida de Orwell e o contexto histórico em que ele viveu e ainda examinar por que o livro continua a ser relevante. Quando estava escrevendo o projeto do livro, Donald Trump foi eleito. O aumento das vendas de “1984” depois da posse dele confirmou que valia a pena escrever esse livro.

Muito se discutiu se “1984” era uma denúncia do nazifascismo, do comunismo soviético ou das tendências autoritárias do capitalismo americano. Você remonta as origens do livro à Guerra Civil Espanhola, na qual Orwell lutou contra as forças de Franco. Por quê?

Orwell foi para a Espanha acreditando que o fascismo era a principal ameaça à liberdade, enquanto o comunismo soviético, que ele nunca apoiou fervorosamente, era um contrapeso necessário. Ficou horrorizado ao ver republicanos perseguirem a esquerda que não seguia as diretrizes de Moscou, como o POUM (Partido Operário de Unificação Marxista) , do qual ele fazia parte. Concluiu que o stalinismo e o nazismo eram duas faces do mesmo monstro totalitário. Para ele, foi estarrecedor ver intelectuais de esquerda pró-Stalin repetirem as mentiras que tinham condenado seus camaradas na guerra civil e se recusarem a publicar seu relato da guerra, “Lutando na Espanha”. Foi quando experimentou o que seria o tema central de “1984”: o pesadelo criado pelo desaparecimento da verdade objetiva.

Orwell voltou aos mais vendidos em 2013, quando Edward Snowden revelou a espionagem americana, e em 2017, após a posse de Trump. “A revolução dos bichos” e “1984” venderam bem no Brasil em 2019. Por que voltamos a Orwell em tempos de turbulência política?

Ao analisar o totalitarismo nos anos 1930 e 1940, Orwell identificou vários fenômenos perniciosos, como sistemas de vigilância, pensamento de grupo, autoengano, que permanecem hoje. As intuições dele sobre como o poder manipula a tecnologia e a linguagem são, infelizmente, atemporais. Fenômenos da última década, como o retorno do populismo autoritário, a difusão de desinformação na internet e a tecnologia minando a privacidade, são dolorosamente orwellianos. Nunca houve tanto desprezo pela verdade nas democracias ocidentais.

Qual a principal lição que os livros de Orwell nos ensinam?

O compromisso com a honestidade, mesmo quando é difícil ou politicamente inconveniente. Isso quer dizer examinar não apenas o que lemos, mas também o que pensamentos, porque o pior engano é o autoengano. Desinformação só funciona se nos permitirmos ser enganados. Orwell era cético e dedicado à verdade.

Em tempos de fake news e ataques de políticos à imprensa, como proteger a verdade objetiva?

Orwell diferenciou a velha mentira política, que tem propósitos específicos, da enganação grotesca e sem fim que destrói a fé na verdade. Como disse a filósofa Hannah Arendt, se nada é verdade, tudo é possível. Precisamos encontrar fontes confiáveis de informações e aceitar que às vezes a verdade pode ser politicamente inconveniente. Se a verdade nunca te deixa desconfortável ou te força a continuar pensando, essa não é a verdade.