Cultura

'A gente grita na senzala para acordar a casa grande', diz escritora americana Alice Walker em debate com Conceição Evaristo

Autoras participaram de uma mesa da Flip, mediada por Djamila Ribeiro, e falaram sobre semelhanças em suas obras, da literatura produzida por escritoras negras e de aborto
Alice Walker Foto: Reprodução
Alice Walker Foto: Reprodução

Uma das atrações mais aguardadas da 9ª Festa Literária Internacional de Paraty, a escritora americana Alice Walker, autora de 'A cor púrpura' (vencedor do Prêmio Pulitzer em 1983) participou na noite deste sábado (4) de um debate virtual com a escritora brasileira Conceição Evaristo.

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A mesa, batizada “Em busca do jardim”, teve mediação de Djamila Ribeiro, que abriu os trabalhos lembrando que era dia de Iansã. Ela pediu licença à orixá do vento para saudar o candomblé, "religião que traz a consciência dos nossos ancestrais", antes de iniciar a conversa.

Alice Walker, cujo primeiro livro de não ficção ("Em busca dos jardins de nossas mães") acaba de ganhar uma edição brasileira, pegou o gancho da fala de Djamila para chamar a atenção sobre a importância de trazer sempre consigo "nossas mães, avós, bisavós, que ficaram o mais firme que os seres humanos já conseguiram por séculos", disse, referindo-se ao período da escravidão.

- Não podemor ir a lugar nenhum sem nossas ancentrais. Precisamos dessa formação para saber que é possível continuar ficando de pé na nossa verdade.

Dona de uma obra completamente marcada pela presença da mulher negra brasileira, Conceição Evaristo disse que, em seu processo de escrita, a "fala ancestral" vem antes do seu próprio texto.

— É como se nossas ancestrais nos dessem a possibilidade de falar. Falar sem elas seria falar no vazio, porque a voz matriz é a das nossas ancestrais que, na maioria das vezes, se realizaram no silêncio. Assim, transformamos esse silêncio em grito.

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A escritora brasileira, autora de livros como "Olhos d'água", "Poncia vivencio" e "Insubmissas lágrimas de mulheres", comentou sobre as similaridades entre a sua literatura e a de Alice, a quem chamou de "ma sista". Para Conceição, a aproximação começa justamente no lugar de procurar nas vozes das mais velhas o fundamento do discurso.

- No livro "Em busca do jardins de nossas mães", ela fala de muitas mulheres que não tiveram oportunidade de explicar sua potência e procuraram caminhos de explicitar essa arte. Nas minhas escrevivências falo que o fundamento é justamente a voz das mulheres escravizadas dentro da casa grande. Apesar de uma situação de subalternizada, em que o silêncio foi exposto, são essas mulheres que potencializaram nossas vozes - afirmou Conceição. - Percebo isso na literatura de Alice e nosso caminho como escritora negra é muito semelhante. Acho que isso comprova essa potência, essa filiação dos povos diaspóricos.

Alice comentou sobre suas motivações ao fazer viagens ao Oriente Médio e à África. Contou que desde a adolescência passou a ir a Uganda por causa de uma colega de quarto, nascida naquele país.

- Ela era muito maravilhosa e nós ouvíamos apenas coisas negativas sobre a África. Precisava ir a Uganda para entender como ela havia se tornado assim. De lá, parti para o Kenia e outras partes da África. Tentava ajudar a acabar com a mutilação feminina naquele continente - lembrou. - No Oriente Médio, meu interesse foi mais na questão de Gaza e na liberação daquela parte do mundo que, na minha opinião, está sofrendo como se fosse o Holocausto. Me sinto conectada a essa parte do mundo e aos tratamentos dados às mulheres que, em muitas culturas, vêm passando por situações difíceis. Também é desafiador essa desintegração do planeta. As pessoas são forçadas a sair de onde vivem e ficar perambulando.

A questão do aborto, outro tema que motiva o ativismo de Alice ("viu que foi proibido no Texas?", indignou-se ela), também foi assunto dentro do escopo das questões relativas à mulher colocadas por ela. Quando Conceição Evaristo refletiu sobre a diferença de perspectiva entre mulheres brancas e negras diante do aborto, a americana comentou sobre sua própria experiência.

- Tive um aborto quando estudante. Como mulher pobre, que mal conseguia se sustentar e tinha apenas um par de sapatos, tenho lugar de fala para dizer: não é possível desenvolver sua capacidade plena se não for dona de si mesma. Seu corpo é o seu corpo. Se tiver toneladas de dinheiro, tempo, talento, 12 filhos e alguém para cuidar deles, ainda sim vai ser demais. Essa questão é fundamental. Não vamos progredir se tivermos mais filhos do que pudermos sustentar.

Alice também comentou falou sobre aprendizado com professores indígenas na Amazônia. Disse dar grande valor à medicina ligada às plantas e à cura por meio delas, principalmente, em relação à psiquê.

- Muitas vezes, as pessoas renegam como se quer existissem, como se fossem saberes menores. Uma parte das pessoas também acha que os negros reclamam muito e que a escravidão era benéfica para os negros. É muito difícil falar disso.

Djamila quis saber de Conceição se a busca pela africanidade dentro de sua obra a ajuda a ressignicar conceitos e também no lugar de cura.

- Penso se existe essa busca pelo significado dessa africanidade brasileira e até que ponto ela é importante para nós. Pois essa africanidade brasileira nos funda como brasileiros no geral, a nacionalidade brasileira é marcada por africanidades e, para nós, negros, é de certa forma um lugar que nos deixa mais confortáveis dentro do Brasil. Afirmar nossa herança africana é fundamental em todos os sentidos. A história do negro é marcada pela exclusão, afirmá-la nos dá vigor para nos posicionarmos.

O panorama atual do mercado literário para escritoras negras também foi debatido. Conceição afirmou que, nos anos 1980, contava nos dedos as autoras mulheres. Segundo ela, apenas uma brasileira preta (Geni Guimarães) dentro do meio que frequentava havia sido publicada por uma grande editora.

- A gente vê que hoje já existe um número bem maior. Mas foi uma luta muito nossa, não ganhamos de presente, ganhamos pela cobrança, pela insistência, por chegar nos lugares sem ser convidadas. Há conquistas, mas foi algo que nós mesmas contruímos - observou Conceição. - A gente nunca vai ter um lugar ao sol tranquilamente. O tempo todo é de luta. O caminho é estar atenta ao coletivo. Uma maneira de manter uma originalidade é junto aos nossos. Se sai dos nossos, o mercado te engole, porque te oferece algo que te faz perder as referências ou te engole porque te destrói.

Alice contou que ela mesma abriu uma editora para publicar seus livros e de outras autoras negras.

- "A cor púrpura" foi muito atacado, principalmente a parte do filme e também a minha pessoa. Não sabiam o que fazer comigo, mas entendi que em vez de lutar e brigar com elas, que não entendiam qual era o meu dom, eu ia começar minha editora. Independente do que estão fazendo com você ou falando de você, enquanto eles gostariam de calar a sua boca, você precisa pensar o porquê de estar aqui. É porque você é maravilhosa! O planeta não tem nenhum problema com a gente, ao contrário, o planeta nos ama. É nossa responsabilidade florescer como ele floresce. Somos seres da terra, mulheres negras com certeza, nativas. E parte do que está acontecendo é o florescimento de escritoras negras.

Alice caiu na gargalhada quando Conceição emendou a sua fala com o ditado: "Os cães ladram, mas a caravana passa".

- Eu amei! Não vejo a hora de usar essa frase - divertiu-se a americana.

Conceição lembrou que sua maior influência literária foram as histórias oralizadas que conheceu dentro de sua própria família e que os "sotaques" dessa oralidade contaminam seu texto. Ela usa a sonoridade que ouvia nas vozes das mais velhas da família como elemento estético de sua obra.

- Depois, minha formação em literatura, como todo brasileiro, é de autoria branca, homens e mulheres. Só mais tarde, nos movimentos sociais que me encontrei com autorias negras, africana, americana, que me marcaram profundamente. Também me encontrei com Carolina Maria de Jesus, quando ela só tinha um livro publicado. Uma autora que escrevia com linguajar próprio, o que causava certo deboche. Carolina até hoje é uma linguagem que incomoda.

A escritora acrescentou nomes como a própria Alice Walker, além de Teresa Cárdenas, Paulina Chiziane e Maria Angeli como referências.

- Como a gente se sente à vontade nesses textos, como veiculam nossa voz e nossa estética! Quando negam nossa capacidade de linguagem, negam nossa capacidade de  pensamento, de produzir saber. Quando querem afirmar estereótipos, dizem que não sabemos falar. Afirmar nossa linguagem é afirmar a nossa humanidade, e acho que nossa literatura passa muito por isso.

Nesse momento da conversa, as duas travaram uma dobradinha cúmplice.

- Quando pensamos, é arriscado, perigoso. Preferem não saber o que estamos pensando porque soa como crítica - disparou Alice.

No que Conceição completou:

- Talvez fique difícil para eles, porque a nossa história não é para ninar a casa grande, é para acordar o sonos dos justos.

Foi quando Alice arrematou:

- A gente grita na senzala para acordar a casa grande.

A conversa, assistida por cerca de 350 pessoas via YouTube, foi encerrada com uma bonita frase de Conceição Evaristo:

- Somos o futuro que nossos ancestrais sonharam, da mesma forma que estamos sonhando para as gerações futuras. Tudo vai acontecer, quer queiram quer não. Sabe por que? Porque, repito: os cães ladram e a caranavana passa.