Exclusivo para Assinantes
Cultura Martha Batalha

A história é sedutora

Às vezes tudo parece óbvio. Outras vezes nada faz sentido. O que leva uma civilização sofisticada e culta como a dos árabes na Europa medieval retroceder a ponto de anular mulheres e jurar de morte um escritor?

No começo eram os etruscos. Centenas de milhares, prosperando sob as tiras azuis de um mapa no quadro-negro. Depois vieram os gregos, os romanos e os egípcios, cada qual ocupando um espaço atípico da posteridade: contornos em giz, frases em letra cursiva no caderno pautado, a foto de um pote lascado no livro escolar. Grandes impérios, resumidos em pontos memorizados para a prova: estratégias militares, técnicas de irrigação, politeísmo.

Eu devia estar na quinta ou sexta série. História era um conceito abstrato, uma ideia polida e de sofisticado conteúdo europeu. Servia para passar de ano e para eu provar meu status através de um caderno colorido por canetas da Hello Kitty, compradas na loja Hallmark do BarraShopping por uma fortuna (toda a minha mesada). Em algum momento apareceu o Brasil, a monocultura e o tráfico de escravos como alternativa à preguiça dos índios. Tudo parte de uma narrativa hermética e acrítica, vaga e desinteressante, sem ligação aparente com a realidade.

Aos poucos eu aprendi sobre uma outra história, mais viva, dolorosa e recente. Dela fazia parte a melancolia do meu pai já perto dos 40 sentado na beira da cama, lamentando nunca ter votado para presidente. Ou minha mãe bebendo cerveja com os pés sobre a mesa de centro, na vitrola o novo LP do Chico, ela me explicando as sutilezas da letra de “Meu guri”. Ou ainda a visão das prateleiras vazias dos mercados nos anos Sarney, ou ter meu primeiro salário aumentado a cada mês como tentativa de se equiparar à inflação, ou finalmente entender por que as tais canetas importadas da Hello Kitty eram tão caras. História se tornou algo maior, mais interessante e pessoal, e explicava por que eu falava português e não espanhol ou tupi, adorava um Deus católico, tinha a cama feita por uma empregada e a pele (quase) branca.

Às vezes tudo parece óbvio, e é possível ligar os pontos entre passado e presente. Outras vezes nada faz sentido. O que leva uma civilização sofisticada e culta como a dos árabes na Europa medieval retroceder a ponto de anular mulheres e jurar de morte um escritor de romances? Por que o aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus causou protestos massivos em 2013 enquanto um presidente corresponsável pela morte de centenas de milhares permanece intocável despachando no Planalto? Por que a morte de George Floyd resultou numa revolução social nos Estados Unidos e mortes similares no Brasil e na Itália só causaram a indignação contida das redes? São as perguntas, como dizem os americanos, de um milhão de dólares, expressão que em si define o que move esse povo.

Por estes dias eu lancei meu segundo romance na Espanha, e alguns repórteres quiseram saber como está o Brasil. O que eu queria dizer no impulso era ah, meu filho, está um cocô. Mas eu me contive, e depois de uns segundos respondi: barulhento. Ainda aprendendo sobre si mesmo, e aprendendo a ter memória. No meio de tanto ruído, a carta em defesa do estado democrático é uma esperança. Gente boa e com centenas de milhares de seguidores nas redes (Eduardo Bueno, Lilia Schwarcz) ensinando uma história mais acessível, sedutora e pertinente que a aprendida por mim na escola é uma esperança. Jornalismo competente é uma esperança. E rolou um instante Fernando Pessoa, eu fingi e descobri que era verdade, era isso mesmo, a gente está aprendendo e pode, sim, melhorar.