Exclusivo para Assinantes
Cultura Artur Xexéo

A revolução do amor

‘A cor púrpura’ fala de uma época em que a mulher sofria a repressão de uma sociedade injusta. Soa familiar?

No número de abertura do musical “A cor púrpura”, o coro de uma igreja no Sul dos Estados Unidos canta que Deus age de maneira misteriosa. Ou que “mil mistérios tem todo ato de Deus”, o jeito que ficou na montagem que está estreando este fim de semana na Grande Sala da Cidade das Artes e cuja versão brasileira eu tive a honra de assinar. No musical, todos os personagens estão reunidos num culto religioso que celebra o poder divino. Para mim, que tenho visto todas as noites um grupo de atores inacreditavelmente talentosos contar a saga de Celie, a heroína criada por Alice Walker no romance que ganhou o Prêmio Pulitzer e originou a peça, o coro canta que o teatro também age de maneira misteriosa.

O musical estreou na Broadway em 2005. Há 14 anos, portanto. Por que demorou tanto para chegar ao Brasil? Já houve, pelo menos, uma tentativa de montá-lo aqui, mas a iniciativa se frustrou. Parece que o teatro estava esperando por um tempo no qual o musical fosse mais relevante. E este tempo é agora. “A cor púrpura” é um musical ambientado no Sul dos Estados Unidos na primeira metade do século passado. Fala de uma época e uma região em que a mulher sofria a repressão de uma sociedade injusta, machista e preconceituosa. Soa familiar? “A cor púrpura” parece estar falando para o Brasil de hoje, aquele país onde, a cada sete minutos, uma mulher é vítima de violência doméstica.

Quinze anos atrás, Letícia Soares estava apenas começando sua carreira. Não teria maturidade para interpretar o papel principal de um musical que exige tanto talento e tanto poderio vocal de sua protagonista. Misterioso, o teatro esperou por ela, e a atual montagem de “A cor púrpura” encontrou uma atriz madura que ganha a plateia desde o primeiro momento em cena. Na primeira vez em que o espetáculo foi apresentado ao público, na quarta-feira passada, Letícia foi aplaudida de pé após interpretar a mais famosa das canções da peça, “I’m here” (“Estou aqui”, na nossa versão). Como Celie, ela passou a vida toda sendo “xingada” de preta, feia e mulher. Naquela cena, ela levanta a cabeça e descobre que não precisa de ninguém para ser feliz, só dela mesma. E, enfim, se admite bonita. Já vi muitas atrizes serem aplaudidas no meio de uma peça. Já vi muitas atrizes serem aplaudidas de pé no fim de um espetáculo. Mas nunca tinha visto uma atriz ser aplaudida de pé no meio de uma peça. Pois Letícia foi. Sua atuação é tão comovente, sua voz é tão poderosa, que só resta ao público aplaudir. De pé. No meio da peça. Não dá para esperar até o fim.

Quem se lembra do filme de Spielberg baseado no mesmo romance, aquele que revelou Whoopi Goldberg para o mundo, sabe que Celie simboliza o triunfo do amor sobre o preconceito. É uma peça sobre o amor. E é muito bom falar de amor num tempo em que, oficialmente, se alimenta o ódio. Celie é abusada sexualmente pelo pai, é subjugada pelo marido, é afastada da irmã, perde o direito de criar seus filhos... Mas não perde a fé e a capacidade de amar. Durante duas horas e meia, de um palco de teatro, ela só distribui amor. No Brasil de hoje, isso é uma revolução. O teatro age de maneira misteriosa.