Cultura

A tensão pré-UPP no Complexo do Alemão contada em filme

Longa dirigido por José Eduardo Belmonte, com estreia prevista para novembro, trata dos dias anteriores à operação policial de retomada do conjunto de favelas, com cenas rodadas no local

O diretor José Eduardo Belmonte (de camisa verde) e os atores Milhem Cortaz, Otávio Muller, Marcelo Melo Jr., Mariana Nunes, Caio Blat e Gabriel Braga Nunes
Foto: Guillermo Giansanti / Agência O Globo
O diretor José Eduardo Belmonte (de camisa verde) e os atores Milhem Cortaz, Otávio Muller, Marcelo Melo Jr., Mariana Nunes, Caio Blat e Gabriel Braga Nunes Foto: Guillermo Giansanti / Agência O Globo

RIO - Dentro do exíguo e caótico porão de uma pizzaria de uma favela carioca, cenografada em um colégio de freiras desativado, encravado no Alto da Boa Vista, cinco policiais infiltrados na comunidade, agora ameaçados pela revelação de suas identidades, aguardam dois destinos possíveis: o resgate pelas forças da lei, que resultará na exposição de uma missão clandestina da PM, ou a execução pelos traficantes. A sequência, acompanhada pela reportagem do GLOBO no início da semana, é parte essencial da trama de “Alemão”, longa no qual o diretor paulista José Eduardo Belmonte (“Se nada mais der certo”) recria, com fartas doses de imaginação, os momentos que antecederam a ocupação das favelas do Complexo do Alemão, em novembro de 2010, sugerindo a infiltração de oficiais na megaoperação.

Acompanhado com interesse por telespectadores de todo o país — e por redes de TV estrangeiras —, o mais polêmico episódio do processo de pacificação das áreas de conflito cariocas é mostrado do inédito ponto de vista dos que estavam do lado de dentro da guerra prestes a eclodir. A história de “Alemão”, o primeiro filme de ficção rodado na favela, uma das mais perigosas do Rio, termina quando o cerco é deflagrado.

— Meu desejo não era fazer um filme sobre a tomada do morro ou construir um tratado sociológico sobre a pacificação, mas oferecer um bom entretenimento, uma história crível, que o público quisesse ver — diz o produtor Rodrigo Teixeira, da RT Features (“O cheiro do ralo”, de 2006, “Heleno”, 2011), idealizador do projeto, que terá distribuição da Downtown Filmes. — Bastavam uma boa história e bons personagens, capazes de atrair um elenco bacana.

Cauã Reymond vive traficante

Parece ter funcionado. Caio Blat (Samuel), Milhem Cortaz (Branco), Otávio Muller (Doca), Gabriel Braga Nunes (Danillo) e Marcelo Melo Jr. (Carlinhos) integram o núcleo de policiais disfarçados, agora confinados. Antônio Fagundes interpreta o delegado Valadares, que hesita em resgatar o grupo, incluindo o filho, Samuel, com quem teve uma briga; e Cauã Reymond vive Playboy, o temido traficante da região. A produção, que tem estreia agendada para 8 de novembro, prevê filmagens no Alemão e no Chapéu Mangueira.

— A ação se passa nos três dias que antecederam a ocupação, a partir do momento em que a identidade dos agentes é descoberta pelos traficantes, causando a antecipação da invasão. Pegos de surpresa, ficam acuados e atormentados pela possibilidade da existência de um X9 entre eles. É um filme sobre sacrifícios, porque todos comprometem algo de si nesse drama — diz um entusiasmado Caio, num dos salões do colégio, transformado em camarim.

Teixeira assistia a um programa de TV sobre a invasão do Alemão, no final do ano passado, e viu-se perguntando como teria sido a vida lá antes da operação, e de que forma a informação sobre a invasão havia vazado para os moradores. Acabou escrevendo um breve argumento e o enviou a Gabriel Martins, a quem encomendou um roteiro. O texto ficou pronto em um mês.

O produtor imaginou “Alemão” como um filme de ação, cheio de tensão e tiros, mas sem a estrutura cara e complexa dos similares. Algo mais nos moldes de “Doze homens e uma sentença” (1957), de Sidney Lumet (1924-2011), sobre membros de um júri confinados numa sala de deliberação. Acabou recorrendo a Belmonte, a quem delegara a direção de “O gorila” (2012), primeira parceria da dupla, ainda inédita.

— Ele é um diretor com muita experiência no cinema independente, consegue filmar de forma rápida e eficiente com orçamentos pequenos — diz Teixeira, que pretende fechar o de “Alemão” em torno dos R$ 4 milhões, combinando verbas de investidores particulares e dinheiro incentivado. — Além de tudo, Belmonte é um diretor de atores excepcional.

Capítulo recente da história do país

Autor de dramas elaborados, de circulação restrita ao circuito de festivais e salas de arte, como “Meu mundo em perigo” (2007), Belmonte gostou da perspectiva de voltar ao filme de gênero (“O gorila”, primeira experiência nesse departamento, é um suspense) e abraçou o projeto de Teixeira. Ele simpatiza com a ideia de trabalhar com um capítulo da história recente do país.

— Diferentemente do americano, capaz de refletir sobre o contemporâneo, o cinema brasileiro vive um hiato com a realidade, porque nosso processo de produção é mais lento. Por isso ele é tão alegórico, às vezes — avalia o diretor. — O legal do projeto é que não se busca reposta definitiva para nada. Ainda temos o vício de sermos totalizantes. É mais interessante jogar várias luzes sobre o mesmo tema.

À época da ocupação do Complexo do Alemão, Belmonte se preparava para rodar “Billi Pig” (2011), comédia com a qual propunha encurtar a distância entre o cinema comercial e o filme de arte. Por medida de segurança, a produção foi adiada e só foi retomada quatro meses depois. Ironia das ironias, a guerra do morro do Alemão acabou inspirando um projeto que também busca uma terceira via para o cinema brasileiro.

— Temos assistido a uma briga de foice entre o filme comercial e o de arte. É preciso saber misturar mais, destruir esse paradoxo, não ficar preso a um gueto — entende Belmonte. — “Alemão” tem elementos dos dois segmentos. Tem tiroteio e correria, mas não é um videogame. É muito bom poder contrabandear ( para dentro de um filme desse tipo ) uma reflexão sobre a guerra ( urbana ), mostrando como são as pessoas que estão no cotidiano desse processo.

Há a esperança que “Alemão” dê um novo sentido ao chamado favela movie, subgênero brasileiro inspirado na precária realidade das comunidades em conflito. A retomada, aliás, também será tema de um filme do diretor José Padilha (“Tropa de elite”), que terá o ex-capitão do Bope Rodrigo Pimentel como roteirista.

— A gente pode até dizer que “Alemão” é um favela movie, mas ele não tem a culpa ( social ) de um “Carandiru” ( 2003, de Hector Babenco ), nem procura encontrar culpados, como “Tropa de elite” — opina Milhem Cortaz, do alto de sua experiência em filmes como os dois citados e “Assalto ao Banco Central” (2011). — É um filme em que a ação vem de dentro dos personagens, o que é uma forma diferente de falar sobre o tema.

Belmonte concorda que seu filme não tem nada a ver com “Cidade de Deus” (2002) ou “Tropa de elite”. Mas reconhece os paralelos de “Alemão” com eles:

— A diferença é que o filme imaginado por Ricardo fornece mais dimensão humana à realidade que explora, olha com mais carinho para os moradores da favela — avisa o diretor. — De qualquer maneira, estamos lidando com um tema quente. Não só a situação do Alemão, mas a questão social que ele representa, do ponto de vista da pacificação. É um grande tema brasileiro.