Cultura

A Tropicália por José Celso Martinez Corrêa: Desacovardamento na pele da cultura

Para fundador do Teatro Oficina, reestreia de 'O rei da vela' neste mês é inevitável em momento tragicômico da História
Cena de 'O rei da vela', de Oswald de Andrade, montada pelo Teatro Oficina em 1967 Foto: Divulgação
Cena de 'O rei da vela', de Oswald de Andrade, montada pelo Teatro Oficina em 1967 Foto: Divulgação

SÃO PAULO — O poeta antropófago Oswald de Andrade escreveu “O rei da vela” em 1933 — na ascensão do nazismo, fascismo, stalinismo — e o publicou em 1937, no início da 2ª Guerra Mundial, quando nascem, no mesmo dia 30 de março, os bebês Renato Borghi e José Celso Martinez Corrêa. Como tudo se cria para tudo e todos em trio, em plena Guerra nasce, em 21 de outubro de 1941, outro bebê: Hélio Eichbauer. Crescem, conhecem-se e, com muitos outros bebês já crescidos, dão à luz “O rei da vela”.

O parto foi no chão do palco móvel do arquiteto-artista Flávio Império, no Teatro Oficina renascido das cinzas do CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Era a noite de 29 de setembro de 1967. Sentíamos que, naquele parto, a Terra em transe que já havia parido Glauber Rocha, era a mesma que terremoteara os quadros nas paredes que Hélio, o Oiticica, vestia em si, pra sambar parangoleando, criando a Terra da Tropicália. Gil guitarreava eletrizado. Caetano na plateia do “Rei da vela” ia compondo a “Tropicália”. Oswald, o primeiro poeta pós-moderno do mundo, desde 1928, retornara à antropofagia dos Burús e nos devorava em 1967, nos comendo e sendo comido por toda nossa geração. Descolonizamo-nos e aquele Brasil foi junto desacovardado, comendo culturalmente a ditadura militar, trazendo o ano que é sempre sem tempo, 1968: o eterno aqui agora. Que sorte! Experimentar o que é viver uma geração de artistas naquela era, quando “ninguém mais espera e desespera tudo em flor” — Zé Miguel Wisnik, cantemos eternamente a tua-nossa “Primavera”.

Agora, de novo na primavera, reestreia “O rei da vela”, 50 anos depois. Um organismo vivo que brota inevitável no momento mais tragicômico da História, pelo menos destes dois artistas de teatro de 80 anos. Renato Borghi revela no corpo, sopro físico do verbo, o poeta Oswald. Zé Celso bota em cena o teatro de entidade do Brasil macumbeiro. Hélio Eichbauer embeleza três atos em diferentésimas belezas tragicômicas multicores.

“O parto foi no chão do palco móvel do arquiteto-artista Flávio Império, no Teatro Oficina renascido das cinzas do CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Era a noite de 29 de setembro de 1967 ”

José Celso Martinez Corrêa
Cofundador do Teatro Oficina e diretor da antológica montagem de 'O rei da vela', marco tropicalista

Sentimos o que o povo do Brasil está vivendo, submetido diariamente a golpes. Mas Fernanda Montenegro, inspirada com sua arte de atriz, deu a chave destes tempos do Brasil, com a palavra “desacovardamento”. Traz a ação que, se não cumprida, prenuncia que vamos todos ter a pele arrancada.

A obra prima “O rei da vela” retorna em farsa do mesmíssimo momento que o mundo, especialmente o mundo Brasil, está vivendo agora. Se não estivéssemos com “O rei da vela”, energizando com sua força telúrica, não estaríamos vivos. A insurreição na arte do teatro, como na época da queda da ditadura de 1964, está presente.

A cultura, com nosso cultivo, não vai permitir que persista essa destruição à moda do Estado Islâmico, que os rentistas da pirâmide, os agronegocistas e os especuladores estão fazendo neste momento de maior desigualdade da História da Humanidade.

A tragicomédia orgia chegou, no eterno retorno de “O rei da vela”. Tropicália antropófaga acordada nesta primavera de 2017 do viva a arte!

Cofundador do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa reestreia “O rei da vela” sábado agora no Sesc Pinheiros (SP), com cenário de Eichbauer e 12 atores em cena, incluindo ele próprio e Renato Borghi.