Cultura

A Tropicália por Renato Terra: Uma noite que não terminou

Para cineasta, festival de 1967 semeou liberdade ampla, geral e irrestrita
Gilberto Gil canta 'Domingo no Parque', na final do II Festival Internacional de Música Popular Brasileira, em 21 de outubro de 1967: cena do documentário 'Uma noite em 67' Foto: DIVULGAÇÃO / DIVULGAÇÃO
Gilberto Gil canta 'Domingo no Parque', na final do II Festival Internacional de Música Popular Brasileira, em 21 de outubro de 1967: cena do documentário 'Uma noite em 67' Foto: DIVULGAÇÃO / DIVULGAÇÃO

RIO — No palco, alguns dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos: Edu Lobo, Gilberto Gil, Os Mutantes, Caetano Veloso, Chico Buarque, MPB 4, Roberto Carlos, Sérgio Ricardo,Elis Regina, Dori Caymmi, Nara Leão, Sidney Miller, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Nana Caymmi.

Na plateia, uma geração que foi calada pela ditadura encontrava sua voz naquelas músicas. O país estava dividido, os ânimos à flor da pele. Havia muito mais em jogo do que uma disputa de canções — ainda que estas canções fossem antológicas.

Aquele festival era o clímax de uma disputa musical que refletia o clima político do Brasil, polarizado, depois do golpe de 64: de um lado, uma esquerda nacionalista valorizava ritmos regionais brasileiros. Olhar para dentro do país era uma atitude política. Tinham sua bandeira fincada no programa "Fino da bossa", apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, e tinham sua expressão máxima em Geraldo Vandré. A disputa se dava contra a Jovem Guarda, que trouxe o rock, a guitarra elétrica, as letras sobre carrões, namoradas e festas de arromba. Era, por isso, taxada de alienada. O grupo da MPB não permitia que houvesse interseção entre esses dois polos. A cizânia culminou na famosa passeata contra as guitarras elétricas — que também serviu para divulgar a nova versão do "Fino da Bossa": o programa "Frente Única da MPB".

Mas aquela noite de 67 lançaria as sementes de algo novo, libertador.

Caetano Veloso sabia que era uma atitude política subir naquele palco acompanhado de roqueiros argentinos cabeludos. E mais: começou “Alegria, alegria” com três acordes de guitarra. A força arrebatadora da canção, a letra moderníssima, o carisma de Caetano provocaram uma catarse coletiva: aquele exigente público percebeu que estava diante de uma obra de arte. As vaias se transformaram numa ovação. E o versos “Por que não? /Porque não?”, ecoaram como um convite ao fim daquela polarização embrutecedora.

“A força arrebatadora da canção, a letra moderníssima, o carisma de Caetano provocaram uma catarse coletiva: aquele exigente público percebeu que estava diante de uma obra de arte. ”

Renato Terra
Codiretor, com Ricardo Calil, do documentário “Uma noite em 67”

Gilberto Gil havia participado da passeata contra as guitarras. Mas não acreditava na divisão de territórios. Queria Luiz Gonzaga, sim, mas com arranjos do "Sgt Pepper’s". “Domingo no parque” se equilibrou numa capoeira pontuada pelo tradicional berimbau e pelo moderno baixo de Arnaldo Baptista, que reverberava, grave, por amplificadores valvulados. O arranjo de Rogério Duprat para orquestra dava uma dimensão épica. Outra obra-prima que rompeu a polarização.

As sementes do Tropicalismo germinaram liberdade ampla, geral e irrestrita. A dissolução dos territórios entre MPB e Jovem Guarda possibilitou uma criação mais fértil de música popular. Nas roupas, nos costumes e no comportamento, o Tropicalismo antecipou algumas das questões contemporâneas da inclusão dos homossexuais, dos negros, do feminismo. A liberdade de ser quem você quiser. O poder transformador de uma obra de arte. Um caminho que ilumina e destrava um país polarizado. São ecos atualíssimos de Caetano e Gil que continuam aí, 50 anos depois daquela noite em 67.

Renato Terra é codiretor, com Ricardo Calil, do documentário “Uma noite em 67”