Há várias maneiras de ler “A Liga Extraordinária — A Tempestade” . Vou propor quatro. A primeira é simples: você começa na primeira página e vai até a última. Mas aviso: na experiência deste e de outros leitores, lida dessa forma “A Tempestade” é incompreensível.
A segunda maneira é pedindo ajuda. Procure “League of Extraordinary Gentlemen Annotations” no Google e ache manuais que guiam você, quadro a quadro, pela pilha de referências em cada página da HQ. (As anotações, por enquanto, só existem em inglês.)
Só assim você saca que a segunda página, em preto e branco, imita os gibis ingleses dos anos 1950 e traz Satin Astro e Burt Steele, super-heróis daquela época; que “a cidade de Nós” é referência ao romance russo “Nós”, inspiração do “1984” de George Orwell; que o robô Manshonyagger vem dos contos futuristas de Cordwainer Smith (1913-1966); que uma plaquinha no prédio refere-se a um gibi de 1943 da Mulher-Maravilha ; e que Satin e Burt estão enfrentando uma versão disfarçada da Legião dos Super-Heróis da DC.
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E essa é só uma página. São mais 255. Por mais que boa parte destas citações seja de referências cifradas sem consequência, algumas são essenciais para a trama.
Quando Alan Moore e Kevin O’Neil l criaram a “Liga Extraordinária”, a premissa era simples: heróis da literatura vitoriana unem forças e viram os Vingadores do século XIX. Capitão Nemo, Mr. Hyde, Mina Harker (de Drácula), Allan Quatermain e o Homem Invisível estrelaram dois álbuns enfrentando ameaças retiradas de livros e folhetins da época.
Nos álbuns seguintes, o caldo engrossou. A Liga ganhou versões desde o século XVI até hoje. A literatura fantástica, a cultura pulp e pop, o cinema, os quadrinhos e a televisão se misturaram nas tramas, como se todos os universos ficcionais existissem em um só. Foi assim que “ Século ”, o penúltimo álbum, encerrou com uma briga entre Mary Poppins e Harry Potter . Em versões para evitar processo, claro. Em “Tempestade”, Emma Pee l, do seriado de TV britânico sessentista “ Os Vingadores ”, vira aliada da Liga. James Bond é um dos inimigos. Austin Powers faz uma ponta.
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As referências não aparecem apenas nas imagens, mas também no texto. Moore é um grande emulador de estilos e, se a cena pede o tom de Stan Lee , ele entrega um Stan Lee perfeito e cheio de aliterações (e O’Neill complementa com um traço à la Jack Kirby). Se a página pede Ian Fleming, a voz de James Bond soa como nos livros.
Só um leitor muito privilegiado encontra sozinho, no meio dessa salada de citações, a trama de “Tempestade” sobre conspirações na inteligência britânica e o enredo cósmico-apocalíptico sobre fins de universos — engendrado por Próspero, da peça “A Tempestade”, de William Shakespeare. Os próprios autores admitem, no epílogo, que, se quiser entender, o leitor tem que suar.
A terceira maneira de ler “A Tempestade” é, na verdade, reler. Não hoje, mas sempre. Afinal, a cada par de anos os fãs de Moore tiram “ Watchmen ”, “ V de Vingança ” ou “ Monstro do Pântano ” da estante, releem e descobrem algo a mais. Pois o celebrado autor acaba de fechar o ciclo de mais uma obra pensada para o vai e vem da estante.
O próprio formato gráfico segue esta proposta. A edição brasileira tem capa dura, papel de qualidade, fitilho de livro antigo. Uma edição limitada vem com um envelope de cards, pôsteres e os óculos 3D que você tem que usar nas cenas do Mundo Brilhante de Próspero . É um baú de tesouros, para abrir e reabrir.
A quarta leitura é a da despedida. Moore e O’Neill dizem que se aposentaram dos quadrinhos depois desta empreitada, cansados dos “escroques” que comandam a indústria. Quando os dois conversam no epílogo, dão a entender que a culpa também é dos leitores.
“São selvagens ingratos, Al, que nunca apreciaram verdadeiramente sua genialidade”, diz O’Neill.
“Cobertos de razão, você e o diálogo que eu lhe dei, Kev!”, responde Moore.
Há várias maneiras de ler “A Tempestade”. Os selvagens ingratos vão precisar de todas.
* Érico Assis é tradutor, pesquisador e crítico de quadrinhos
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“A Liga Extraordinária — A tempestade”
Autores : Alan Moore (roteiro) e Kevin O’Neill (arte). Editora: Devir. Tradução: Jotapê Martins e Leandro Luigi del Manto. Páginas: 256. Preço: R$ 160. Cotação: Ótimo.