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Cultura

Alejandro Chacoff: 'Na literatura, dinheiro é tabu maior do que sexo'

Crítico literário estreia na ficção com 'Apátridas', romance parcialmente inspirado na vida do autor
O escritor Alejandro Chacoff, autor de "Apátridas" (Companhia das Letras) Foto: Chico Cerchiaro / Divulgação
O escritor Alejandro Chacoff, autor de "Apátridas" (Companhia das Letras) Foto: Chico Cerchiaro / Divulgação

SÃO PAULO – Durante quase cinco anos, o escritor Alejandro Chacoff trabalhou como analista político na Control Risks, uma consultoria inglesa, onde redigia relatórios sobre a situação política de países da América Latina. Às vezes, quando viajava para tocar projetos ou pesquisas na região, preferia ficar lendo no hotel. Antes de conhecer escritores de carne e osso em Londres, não imagina que fosse possível viver da escrita. Em 2011, resolveu trocar os relatórios excessivamente abstratos, preocupados com o comportamento de governos e oposições e em prever resultados eleitorais, pelo ensaio e pela ficção.

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Na próxima quarta-feira (11), chega às livrarias “Apátridas”, primeiro romance de Chacoff, que é crítico literário da revista “piauí”. Na ficção, Chacoff procurou se afastar da política e se voltou a um tema que, embora corriqueiro, anda meio ausente da literatura contemporânea: o dinheiro.

— Falar de dinheiro é um tabu maior do que falar de sexo. Sinto que, na literatura, o dinheiro é tratado com certo moralismo que isenta do narrador de se ver afetado por ele, ou encarar o papel que ele tem na nossa sociedade, nas nossas vidas — diz Chacoff, que aprendeu a escrever sobre dinheiro com autores como o argentino Ricardo Piglia e os britânicos V.S. Naipaul e V.S Pritchett. — Amit Chaudhuri (escritor indiano) também me influenciou muito em como escrever relatos em meio a uma sociedade periférica e brutalmente desigual sem constantemente romantizar ou sentimentalizar a pobreza.

Capa de "Apátridas", romance de estreia de Alejandro Chacoff, publicado pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Apátridas", romance de estreia de Alejandro Chacoff, publicado pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação

Na primeira página do livro, o narrador sem nome de “Apátridas” recorda as “notas sempre novinhas” dos dólares americanos que conheceu na infância, antes do divórcio de seus pais e da mudança, com a mãe e a irmã, para a casa do avô, no Mato Grosso. “O dinheiro exercia alguma função narrativa que eu não entendia bem; era como a memória ou a história”, diz o narrador, que voltou ao Brasil no começo dos anos 1990, antes do Plano Real.

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Ninguém sabia direito quanto dinheiro rendia o cartório do avô, que distribuía envelopinhos recheados de notas para um punhado de agregados. Quem sonhava com um desses envelopinhos era o pai do narrador, um chileno que nunca explicou direito para a família com o que trabalhava, dizia só que era em um banco e que talvez fosse transferido para a Alemanha.

Xingamento ou elogio?

Apesar de tocar em temas tão brasileiros como cartórios, agregados e a relação afetuosa e condescendente que os donos do dinheiro têm com seus dependentes, Chacoff diz que não quis escrever um romance contaminado por assuntos graves.

— Sou contra que, antes de se elaborar o material da ficção, o escritor se apegue a ganhos temáticos, como se houvesse uma mão sociológica decidindo tudo — explica. — Como há uma relação muito próxima entre a vida do autor e do narrador, tentei me afastar de uma literatura temática e apenas fazer um registro concreto de cenas e deixar que elas talvez iluminassem algumas questões.

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Chacoff confessa que “a vida do narrador se inspira parcialmente” na dele. Mas prefere não entrar em detalhes:

— O que autor e narrador mais têm em comum é terem vivido em vários países. As outras semelhanças biográficas não vêm ao caso.

Nascido em Cuiabá, em 1983, Chacoff foi para os Estados Unidos aos 2 anos de idade. Viveu no Chile, voltou ao Brasil, seguiu outra vez para os EUA, depois para Londres, Buenos Aires e, finalmente, para o Rio, onde fincou raízes há cinco anos e meio e se casou com uma carioca. O narrador, que também trabalha em uma consultoria inglesa, só não menciona esses dois últimos destinos.

No romance, a palavra “apátrida” aparece como xingamento, um dos preferidos de um tio do narrador. Para Chacoff, é quase um elogio.

— Não sei explicar por quê, mas a palavra “apátrida” me evoca um certo prazer, um desejo de lembrar que “nacionalidade”, um conceito insano e pelo qual sou obcecado, é uma abstração incapaz de encapsular uma identidade — diz. — Toda identidade é uma batalha de lealdades familiares e geográficas. Se a literatura serve para alguma coisa é para recusar a ideia de que a identidade é imutável.

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Juliana Cunha

O romance “Apátridas” é uma espécie de “Menino de engenho” (1932) revolvendo a elite burocrática do Centro-Oeste. A comparação é esdrúxula, mas não totalmente. Aqui, o coronel José Paulino dá lugar a um dono de cartório e o ambiente é de ascensão, e não de queda; mas o tom memorialístico, as descrições da vida familiar e social, das hierarquias e relações com agregados, favorecidos e parentes são vagamente semelhantes. Assim como Carlos, o narrador não nomeado de “Apátridas” é uma personagem um tanto inorgânica, com um pertencimento capenga onde quer que vá. E assim como José Lins do Rego, o autor tem um interesse por resquícios da antiga ordem escravista e patriarcal.

O romance narra a história de um menino que volta para o Mato Grosso depois de ter passado quase a vida toda nos EUA. Filho de uma brasileira e de um chileno trambiqueiro, o narrador vai morar na casa do avô junto com a mãe e a irmã após o divórcio dos pais. Lá é inserido em uma réplica de ambiente colonial financiado por esse suco de Brasil que é concessão pública dos cartórios. O José do 8º Ofício de Chacoff não tem a voz de mando de um José Paulino, mas dá sugestões com peso de ordem a seu capanga Romualdo (uma das personagens mais gostáveis e bem construídas de um livro que não carece delas) e sustenta um séquito de agregados com seus envelopes de dinheiro, entregues ora como favor, ora como uma obrigação natural.

As partes mais divertidas são aquelas centradas na escola construtivista mato-grossense que tortura as crianças com falta de ordem em uma ilustração aprumada do conceito de “ideias fora do lugar”, cunhado por Roberto Schwarz. Especialmente nessas sequências, o estilo do autor lembra um pouco o de Alejandro Zambra, sobretudo em “Formas de voltar para casa” (2011).

Parte considerável do livro se dedica a esse entre-lugar ocupado pelo narrador e a observações agudas da sociedade americana e brasileira: da relação tátil dos americanos com o dinheiro e dos latinos com seus objetos, da nossa crueldade e do nosso desrespeito institucional manifestado do jeito mais afetuoso, do modo como a transição para a adolescência e depois para a vida adulta corrigem uma aparente igualdade na infância e sedimentam posições sociais. Do lado americano, a figura do dr. Stevenson é feliz ao colocar essa ambiguidade do gringo que entende de cultura indígena e explica a história do estado a seus próprios habitantes, mas que não tem aparato cognitivo para compreender a elite da terra.

Apesar do humor — por vezes escatológico e bem de menino —, apesar do memorialismo bem aplicado, o que chama a atenção em “Apátridas” é o acabamento. Não é uma coisa comum por aqui um texto lapidado, claramente trabalhado pelo processo editorial. Aqui, mesmo os livros bons costumam ser cortados a facão. O resultado impressiona, mas causa um certo estranhamento ver esse autor semigringo escrevendo em um português mais preciso e livre de anglicismos cafonas do que a maioria dos escritores 100% brasileiros, que por vezes têm empregado um português estranho de legenda da Netflix.

Um defeito do romance é a falta de confiança na capacidade interpretativa do leitor, algo que vem se repetindo em muitas obras dentro e fora da literatura. São poucas as vezes em que o autor apenas sugere algo, sem deglutir tudo para o leitor. Isso faz com que a leitura, que devia ser um jogo de jogar junto, passe a ser um desses vídeos de gameplay onde você apenas assiste a um jogador mais habilidoso superando as fases por você. Um exemplo disso é a coisa da falta de organicidade do corpo inodoro e asseado demais do pai em oposição ao corpo da mãe, aos escarros do avô. A relação do pai com o dinheiro e como ele próprio incorpora um certo presente eterno da mercadoria. O modo como o afeto do filho por ele se manifesta justamente nos momentos em que essa assepsia parece falhar. A gente teria alcançado com menos pistas.

Juliana Cunha é professora da FGV-SP e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP

Serviço

"Apátridas"
Autor:
Alejandro Chacoff
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 49.90
Páginas: 192

Lançamentos:

São Paulo
Livraria da Vila (Rua Fradique Coutinho, 915), 24/3, às 19h
Bate-papo com Alejandro Chacoff e Milton Hatoum

Rio de Janeiro
Livraria da Travessa – Shopping Leblon (Av. Afrânio de Melo Franco, 290), 26/3, às 19h
Bate-papo com Alejandro Chacoff e Emilio Fraia