RIO — Nos últimos dias, milhares de imagens da Amazônia rodaram o mundo, carregando junto uma miríade de clichês. No meio de tanta fumaça — e fogo —, porém, outra Amazônia chama a atenção na arte, literatura, TV, música. Um romance noir num cassino, uma galeria com palafitas grafitadas, fotos que revelam a periferia em luzes estão entre os exemplos de obras que vão além desses estereótipos.
A região também será tema de debate, dia 5, na Bienal do Livro do Rio . “Amazônia, terra de quem?” vai reunir o escritor manauara Márcio Souza (lançando “História da Amazônia”), o jornalista americano Larry Rohter (autor de “Rondon: uma biografia”) e o cientista político Sergio Abranches.
— A Amazônia é a prostituta do mundo. Todos dizem que a conhecem. Todos tiram suas riquezas em contratos espúrios que deixam migalhas para seus moradores — diz o paraense Edyr Augusto Proença, escritor premiado por thrillers que tratam da violência de Belém.
MILTON HATOUM : Obra do indígena Davi Kopenawa é 'o grande livro para entender a Amazônia hoje'
Após lançar “Pssica” (2015), em que segue a trilha de piratas dos rios (os ratos d’água), Proença agora tem “BellHell” no prelo. Previsto para 2020, ele chafurda no mundo de drogas, prostituição e jogos ilegais da Grande Belém — e seus quase 3 milhões de habitantes.
— A Amazônia da minha obra também não é a da selva — lembra o fotógrafo paraense Luiz Braga, que retrata a cultura ribeirinha desde os anos 80 . — Muita gente esquece que aqui há cidades, cultura que escapa à indígena.
Essa Amazônia urbana, ele mostra a partir da próxima quarta-feira no Itaú Cultural, em São Paulo. Há dois anos, apresentou-a no Rio, na Galeria da Gávea.
Umas das maiores referências culturais amazonenses, o escritor Milton Hatoum defende que o melhor retrato da Amazônia está no livro “A queda do céu” (2016), de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Segundo Hatoum, essa mistura de autobiografia e manifesto xamânico traz uma visão extremamente original ao debate:
— É um olhar diferente, totalmente refratário ao que os brancos pensam, pois eles (indígenas) não veem a natureza como mercadoria. A queima da floresta é a queima de uma cultura milenar. É um crime contra a Humanidade.
Rap e grafite ribeirinho
Nessa tensão recorrente entre verde e cinza, linguagens essencialmente urbanas como o grafite e o rap ganham espaço entre os igarapés. Desde 2015, o projeto Street River Amazônia organiza anualmente um mutirão de grafite nas casas de ribeirinhos.
Capitaneado pelo artista paraense Sebá Tapajós (da ilustração acima), o projeto é reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como a primeira galeria de arte fluvial do mundo. Além disso, sua série “Raízes”, com desenhos de rios vistos de cima formando imagens abstratas, está na galeria LaRocha, em Belém.
— De voadeira (tipo de lancha), a mata virgem está a 15 minutos de centro urbano, mas muito distante do desenvolvimento. Numa viagem de barco você se depara com comércio da madeira ilegal, prostituição infantil, lixões em ilhas — diz Sebá.
Referência do rap na Região Norte, Victor Xamã reflete sobre as dicotomias de Manaus em suas rimas. Ele, que acaba de lançar o single “Olhos de rio”, prepara a canção “Aula de geografia”, em que aborda a falta de visibilidade da cultura da região:
— É uma luta, um levante que fala “eu sou do Norte, eu vim do Norte, enquanto vocês buscam o Norte a vida toda”.
A busca por visibilidade levou o artista indígena Denilson Baniwa , natural da aldeia Darí, em Barcelos (AM), a disputar — e vencer — o Prêmio Pipa online deste ano. Baniwa pinta obras de indígenas interagindo com tecnologia digital para refletir sobre a preservação da memória dos povos.
Na TV, a região também ganha novos olhares na série “Aruanas” (Globoplay), em que ativistas lutam para preservá-la dos interesses de um empresário da mineração.
Entre os olhares contemporâneos sobre o universo simbólico da Amazônia, há espaço também para uma forma clássica: a ópera. “Dessana, Dessana”, dirigida pelo manauara Matheus Sabbá, conta o mito da criação do mundo a partir de uma visão indígena.
— A gente não tem que usar só linguagens locais para falar da Amazônia. A gente pode fazer ópera com temática amazônica — defende Sabbá.
Para Milton Hatoum, a questão é outra:
— Precisamos superar a dualidade de a Amazônia ser retratada ou como paraíso ou como inferno.