Cultura

Angola, o novo país de Pepetela

Em ‘O tímido e as mulheres’, escritor usa triângulo amoroso para retratar o crescimento econômico e o acirramento das diferenças sociais em Luanda

O escritor angolano Pepetela, que lança no Brasil "O tímido e as mulheres", pela Leya
Foto: Terceiro / Divulgação/Jorge Nogueira
O escritor angolano Pepetela, que lança no Brasil "O tímido e as mulheres", pela Leya Foto: Terceiro / Divulgação/Jorge Nogueira

RIO - O escritor angolano Pepetela acordou de um sonho com um bolero “muito antigo” na cabeça. Não sabia o nome, ou quando o tinha ouvido pela primeira vez, mas lembrava com clareza as primeiras palavras: “ Cuando calienta el sol en la playa... ”. Foi pesquisar na internet e descobriu ser uma música argentina, famosa nas rádios angolanas nos anos 1960. O resto foi uma associação de ideias. E se uma personagem apresentasse um programa de rádio?

Foi daí que nasceu Mariza, apresentadora de voz sedutora do rádio, uma das protagonistas do novo romance de Pepetela, “O tímido e as mulheres” (Leya), que acaba de chegar às livrarias brasileiras. O tímido do título e herói do livro é Heitor, escritor em início de carreira e frustrado no amor. Ele e Mariza se interessam um pelo outro, mas a radialista é fiel a seu marido, Lucrécio, um homem muito inteligente preso a uma cadeira de rodas. Ao redor desse triângulo amoroso, todos os outros personagens da trama são apresentados.

Pepetela, ganhador do Prêmio Camões de 1997, é o codinome que Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos assumiu ao lutar contra os portugueses na guerra de independência de Angola, nos anos 1970. No novo romance, ele usa o triângulo para mostrar as mudanças que a capital de seu país, Luanda, sofreu desde a independência, com crescimento econômico paralelo ao acirramento das diferenças entre classes sociais.

Não à toa, alguns dos personagens de “O tímido e as mulheres” moram em musseques, como são chamadas as favelas de Angola, ressaltando o abismo entre aqueles locais e a “cidade do asfalto”.

— As realidades do Brasil e de Angola são parecidas. O que me preocupa são as diferenciações sociais. Estamos criando uma classe média que deveria fazer a ponte entre a gente da parte favorecida da cidade e as pessoas que vivem em condições miseráveis. Mas isso não está a acontecer. E é isso que me preocupa. Basta andar na rua para perceber. O escritor não pode ser estranho à realidade, com medo de que o acusem de ser demasiado realista — diz Pepetela.

Escritor formado no front da guerra contra Portugal — seu primeiro livro, “As aventuras de Ngunga”, narra a trajetória de um guerrilheiro angolano —, Pepetela lembra que a literatura sempre teve um papel importante na criação de uma identidade nacional em seu país. Mais ou menos o que os escritores do romantismo brasileiro, como José de Alencar, tentaram fazer ao escrever sobre temas nacionais, no século XIX. Com a diferença que, hoje, afirma o autor, a literatura perdeu parte desse poder.

— Nos primeiros anos da independência, a literatura era uma espécie de farol a indicar o rumo das coisas, o que deveria ter sido, o que deveria ser. Hoje há meios mais rápidos de divulgação de ideias. Talvez não mais profundos, mas muito mais abrangentes. A literatura perdeu a grande importância que tinha — afirma o escritor.

Com 20 livros publicados desde os anos 1970 e as mudanças em seu país, o estilo de Pepetela também parece ter mudado. Seus romances, costuma apontar a crítica literária, ficaram mais leves e engraçados (ele tem até livros policiais em que ironiza James Bond, com um herói chamado Jaime Bunda). “O tímido e as mulheres” não é exceção.

— O riso de si é algo muito próprio da cultura angolana. Mas acho que meu estado de espírito mudou. No começo, eu tinha uma preocupação muito maior em abordar os problemas, em tentar resolvê-los pela literatura — diz Pepetela. — Hoje sei que a literatura não vai resolvê-los. Talvez por isso eu dê mais importância ao lúdico, a entreter o leitor. Mas não é algo pensado. Até porque eu não sou tão brincalhão quanto era quando jovem.

“A luta continua”

Apesar de Angola não ter tomado o rumo que Pepetela sonhou quando era um jovem revolucionário, ele não se diz desiludido.

— A luta continua. Só que as vitórias foram mais lentas do que pensávamos. Só fica desiludido quem tem ilusões, e eu sabia que não íamos alcançar tudo pelo que lutávamos — diz o autor. — Nosso sonho não era só de independência, mas de ter uma sociedade diferente, mais livre.