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Aos 90 anos, cineasta Ruy Guerra escreve seu primeiro romance, critica desmonte da cultura e afirma: 'Vamos sair deste buraco'

Um dos expoentes do Cinema Novo, diretor vende parte do seu acervo ao Instituto Moreira Salles (IMS) e confessa ter enfrentado problemas financeiros na pandemia
SC Rio de Janeiro (RJ) 02/09/2021 - Entrevista com o cineasta Ruy Guerra. Foto: Leo Martins / Agencia O Globo Foto: Leo Martins / Agência O Globo
SC Rio de Janeiro (RJ) 02/09/2021 - Entrevista com o cineasta Ruy Guerra. Foto: Leo Martins / Agencia O Globo Foto: Leo Martins / Agência O Globo

“Não nos deixemos abater. Mentalidade de vencido já é meia derrota”, diz Ruy Guerra antes de desligar o telefone. O cineasta completou 90 anos em 22 de agosto e, apesar de alguns problemas de saúde e financeiros que enfrentou recentemente, não perdeu a vontade de lutar. Diretor de joias do Cinema Novo, como “Os cafajestes” (1962) e “Os fuzis” (1964), Guerra nasceu em Moçambique e vive no Brasil desde 1958. E diz assistir apreensivo ao “assassinato cultural” que, segundo ele, vem sendo promovido no país.

Em agosto, o Instituto Moreira Salles adquiriu parte do acervo de Guerra, composto por cerca de 1.200 fotografias, 600 cartas trocadas com grandes nomes da cultura como Cacá Diegues, Glauber Rocha e Mario Vargas Llosa, e 400 itens da produção literária do cineasta: roteiros, letras de música, contos, poemas. (“A venda vai me permitir pagar algumas dívidas e ter um respiro,” conta ele). Também vão para o IMS (que abriga os acervos dos escritores Erico Verissimo e Ana Cristina César, entre outros) cópias de documentos produzidos pelo Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, que relatam a censura a obras de Guerra durante a ditadura militar, como o espetáculo “Calabar: o elogio da traição”, parceria com Chico Buarque, em 1973.

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Colaborador de compositores como Francis Hime, Edu Lobo e Gilberto Gil, Guerra cresceu sonhando em ser romancista. Meio por acaso, enveredou pelo cinema. Em entrevista ao GLOBO, ele contou estar trabalhando em seu primeiro romance, afirmou que o espírito iconoclasta do Cinema Novo permanece vivo na produção brasileira e garantiu não estar deprimido:

— Vamos sair deste buraco.

Você já disse que seu sonho de infância era ser escritor e que começaria sua carreira de romancista aos 100 anos. Você acabou de completar 90. Já está se preparando para virar escritor de vez?

Quando era menino, em Moçambique havia só quatro salas de cinema e ainda não havia televisão. Crescíamos voltados para a literatura, os romances, a poesia e a filosofia. Éramos leitores e trocadores de ideias. Quem tinha uma vocação mais estetizante, não queria ser médico ou engenheiro, encontrava uma resposta na literatura ou no ensaio crítico. Sempre achei que ia ser escritor e continuo querendo ser escritor. Estou escrevendo um romance, chama-se “Tempo à faca”. É uma história de vingança que se passa no Nordeste. É baseado num roteiro que eu escrevi e quero filmar no começo do ano que vem.

Como o cinema roubou o lugar da literatura na sua vida?

Desde garoto eu ia ao cinema ver filmes de bangue-bangue. Uma vez, eu devia ter uns 11 anos, passei na porta do cinema Escala, o maior de Lourenço Marques (atual Maputo, capital de Moçambique) , e estava acontecendo uma sessão aberta de um filme que não tinha passado no circuito comercial. Era “Cidadão Kane”, de Orson Welles! Quando comecei a escrever críticas, ganhei, do dono do cinema, um passe livre para ir a quantas sessões quisesse. O pai de um amigo tinha uma câmera 8mm que nós roubávamos para filmar as corridas de touro que aconteciam uma vez por ano. Quando terminei o liceu, queria estudar cinema na Itália, estávamos no auge do neorrealismo, mas lá os estrangeiros só podiam ser ouvintes. Por isso fui para a França, mas nunca gostei de lá.

Por quê?

Sou muito crítico do passado colonial e do conservadorismo francês. Nunca me deslumbrei com Paris. Era o cara chato que só falava mal da cidade. A França deu sua contribuição ao processo civilizatório e tem grandes escritores, mas sua burguesia é muito egoísta. Depois que saí da França, só voltei a trabalho. Cheguei ao Brasil em 1958, aos 27 anos, e decidi que era aqui que queria ficar. Também não me dou muito bem com São Paulo. Não é que eu não goste, mas é muito asfalto, muito prédio. Sinto falta do mar. Preciso da praia, de espaços livres. Mesmo em casa, sinto a presença do mar logo ali.

Como está a sua saúde?

Fiz duas cirurgias na próstata no ano passado. Minhas pernas ficaram paralisadas depois das cirurgias, mas já recuperei uns 80% dos movimentos. O mais importante é que minha cabeça está boa. Minha memória é ruim para nomes, mas, de resto, está melhor do que quando eu tinha 18 anos. Tenho energia e não estou deprimido. Estou alegre porque sei que vamos vencer. Vamos sair deste buraco. Vou lutar com todas as armas que tiver e sei que vou estar do lado vencedor.

O Cinema Novo se propôs a pensar o Brasil. Você vê essa pretensão no cinema brasileiro atual?

O Brasil tem um grande cinema. Isso pode parecer pretensioso vindo de alguém que participou desse processo, mas o Brasil tem um grande cinema. Saímos das chanchadas da Atlântida, passamos pelo cinema austero da Vera Cruz, que copiava os europeus e americanos e tinha um olhar retrógrado e conservador, até o Cinema Novo, que rompeu com tudo para criar a liberdade de expressão tanto na forma como na temática. Queríamos fazer filmes brasileiros, iconoclastas, revolucionários! Os franceses diziam que montávamos muito mal nossos filmes. O que eles viam como erro era nossa virtude! Estávamos fora dos dogmas da indústria cinematográfica burguesa. A herança no Cinema Novo não é o legado pessoal do Glauber, do Cacá ou o meu, mas o pensamento iconoclasta, a vontade de romper com os modelos existentes. Isso entrou na corrente sanguínea do cinema brasileiro. Nossos filmes são bons até quando são malfeitos! O cinema brasileiro é melhor do que o americano. Quando digo isso, acham que eu já estou gagá. O cinema americano é acomodado. O brasileiro é moderno e progressista.

Quais filmes brasileiros recentes mantêm viva a tradição iconoclasta do Cinema Novo?

“Um animal amarelo” (de Felipe Bragança) é um filme extraordinário, influenciado pelo “Macunaíma”, de Joaquim Pedro de Andrade. Tenho visto poucos filmes, porque atravessei um período complicado em muitos níveis, inclusive econômico. O bolsonarismo fez terra arrasada da cultura, fechou todas as portas criativas e nos deixou humilhados. Isso tem que ser dito com todas as letras, sem medo e sem rancor. Tive que pedir dinheiro emprestado para amigos. A venda do meu acervo vai me permitir pagar algumas dessas dívidas e ter um respiro. Espero que seja o tempo de sairmos desse buraco. Acredito que a compra do meu acervo é um ato político do IMS.

Você foi chamado de “cineasta-viajante” pela Cahiers du Cinéma, e de “nômade porque cineasta ou provavelmente vice-versa” pelo Chico Buarque. Como foi ficar preso em casa na pandemia?

Sou um viajante que gosta de ficar em casa. Viajei muito por razões profissionais, mas uma vez que chegava em casa ficava até dez dias sem sair. Não preciso de tumulto. Sou um cara até meio solitário. Gosto de encontrar as pessoas, mas também gosto do recolhimento.

Os problemas econômicos que você teve são relacionados à pandemia?

Sim. Sobrevivo dificilmente mês a mês. E olha que pertenço ao 1% dos privilegiados! No princípio da pandemia, um grupo de cineastas fez uma vaquinha para que eu pudesse fazer cirurgia na próstata. A extrema-direita está promovendo um assassinato cultural. Quando eu cheguei aqui, o Brasil era o país do futuro. Nunca imaginei que o futuro seria uma sociedade miliciana!