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Cultura

Aos 91 anos e ativa no Twitter, escritora mexicana Margo Glantz critica redes sociais: 'São uma prisão virtual'

Autora do recém-lançado 'E por olhar tudo, nada via' questiona as novas mídias por não diferenciarem o importante do banal: 'Não há mais hierarquia'
A autora mexicana Margo Glantz: "As jovens escritoras latino-americanas são muito ativas politicamente, o que é maravilhoso e aterrador" Foto: Reprodução / Divulgação
A autora mexicana Margo Glantz: "As jovens escritoras latino-americanas são muito ativas politicamente, o que é maravilhoso e aterrador" Foto: Reprodução / Divulgação

Não foi fácil para Margo Glantz publicar seus primeiros livros. Editores diziam que eles eram demasiado fragmentários, contas soltas que nunca formam um colar. Glantz insistiu nos fragmentos até que uma editora quis publicar, em 1981, “Las genealogias”, folhetim inspirado na vida de seus pais. Professora emérita da Universidade Nacional Autônoma do México, ela completou 91 anos em janeiro e é uma das intelectuais mais ilustres de seu país, dona de uma obra que vai da ficção ao ensaio e chega ao Twitter, plataforma perfeita para sua escrita propositalmente fragmentária.

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Glantz ingressou na rede social em 2011. Todos os dias publica frases curtas, quase versos, meio poéticos e irônicos, e compartilha notícias de todos os lugares do mundo (desde o aumento das vendas de camisinha nos EUA até críticas de líderes indígenas à política ambiental brasileira). Ela afirma que os algoritmos que destruíram a hierarquia entre as notícias , fenômeno que ela denuncia em “E por olhar tudo, nada via”, recém-lançado no Brasil. No livro, ela mistura notícias (relevantes e insignificantes) com citações de autores de sua predileção ( Sor Juana Inés de la Cruz , Franz Kafka , Walter Benjamin ), fragmentos autobiográficos e definições de figuras retóricas tiradas da Wikipédia.

Em entrevista ao GLOBO, Glantz comentou seus exercícios literários, seu interesse pelo corpo e por que algumas escritoras latino-americanas às vezes sentem raiva dela.

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Por que o interesse pelas redes sociais?

No princípio, pareciam uma possibilidade interessante de fazer política e se inteirar o que acontecia no mundo. Entrei no Twitter em 2011, quando começou a Primavera Árabe , na qual as redes sociais desempenharam um papel importante. Também me interessei pelo exercício literário de escrever no máximo 140 caracteres. Depois, me surpreendi que as pessoas obedecessem as ordens do Twitter: “o que você está pensando?”, “o que você curte?”, “me dê os seus dados”. Além de exaltar o narcisismo — tuítes são selfies mentais —, as redes manipulam perversamente as notícias. Não há mais hierarquia.

Quais os efeitos da destruição dessa hierarquia?

É como se os feminicídios no México , a Guerra na Síria , os protestos na Colômbia , o divórcio de Brad Pitt e Angelina Jolie e a cirurgia que um político fez na região genital fossem notícias igualmente importantes. A escritora francesa Anne Le Brun escreveu um ensaio importantíssimo sobre como as redes sociais são o verdadeiro Grande Irmão orwelliano . São uma prisão virtual. Ajudaram governantes sinistros, que vocês, brasileiros, conhecem bem, a chegar ao poder. As redes sociais não vão acabar, mas temos que questioná-las. Ainda mais agora, que tudo se tornou tão terrivelmente virtual.

Escândalos de corrupção brasileiros aparece em “E por olhar tudo, nada via”. O livro pergunta: “Ao ler as notícias, como decidir o que é importante?” Quais notícias brasileiras importam?

Preocupa-me terrivelmente a erupção do fundamentalismo evangélico, que nega a cultura e a ciência. O ecocídio da Amazônia é uma das maiores catástrofes do mundo atual. As redes me ajudam a ficar informada sobre os países que me interessam sem precisar ler muitos jornais.

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Seus tuítes são poéticos, irônicos e às vezes indecifráveis. Como decide a linha editorial do seu Twitter?

Alguns tuítes são espontâneos. No começo, sonhava com tuítes e me levantava de madrugava para postar. Os indecifráveis geralmente são políticos. Quando preciso refletir muito politicamente antes de postar, opto por um tuíte críptico, enigmático. O que fala do cotidiano sem metáforas, sem elaboração literária, o que é meramente conjuntural, não me interessa.

O que “E por olhar tudo...” revela sobre a sua obra, tanto no que se refere aos temas que lhe interessam quanto aos procedimentos literários que usa?

Cada um dos meus livros é diferente. Escrevi livros sobre cabelos, pés, seios, olhos, o corpo em geral. Tenho um livro que narra 16 anos de visitas ao dentista. Enfim, o que une os meus livros é uma preocupação muito grande com o fragmento literário e o fragmento corporal.

O que lhe interessa no corpo?

Adolescente, fui acometida de um narcisismo negativo. Meu nariz grande me horrorizava. Comparava com os das atrizes glamorosas de Hollywood. Também percebi, na literatura, que autores como Flaubert e Dostoiévski dedicavam um olhar particular ao corpo feminino, tomado como objeto, não como sujeito. Tento decifrar esse olhar e pensar como nós, mulheres, podemos intervir nos olhares alheios ao construir um novo olhar sobre nossos corpos.

E por que lhe interessam os fragmentos?

Só sei escrever assim. Custou-me que meus livros fossem lidos. Consideravam-nos descartáveis por serem fragmentários e aforísticos. Quando dava aula nos Estados Unidos, não tinha babá e passava o tempo todo em casa com minha filha, comecei a comer muito e a engordar. Escrevi um livro para me ajudar a emagrecer: “Las mil y uma calorías: una novela dietética”, com pequenos textos e fábulas, algumas boas, outras péssimas. Ofereci a dez editoras. Todas rejeitaram e publiquei de forma independente. Depois escrevi um livro sobre baleias, para homenagear “Moby Dick” , e porque um professor disse que só restavam 200 baleias azuis no mundo. Sempre me interessei por elas, são animais míticos que sempre serviram aos humanos. O óleo de baleia já foi o combustível do mundo.

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Em “E por olhar tudo...” a senhora afirma que as obras de Clarice Lispector talvez possam ser mais bem lidas neste século. Por quê?

Alguns autores são pouco lidos em seu tempo porque se adiantam muito a ele. Creio que hoje temos mais chaves para decifrar os enigmas de Clarice. Sinto-me próxima dela porque somos judias e ela nasceu na Ucrânia, de onde vieram meus pais. Nós duas nos assimilamos tanto a nossos países que nos tornamos mais brasileira e mexicana do que judias.

Clarice é um das escritoras latino-americanas que andam fazendo sucesso em inglês. A senhora tem acompanhado esse boom de autoras latinas?

Sim, gosto de Ariana Harwics (argentina) , que é boa tuiteira. As jovens escritoras latino-americanas são muito ativas politicamente, o que é maravilhoso e aterrador. Às vezes levam o feminismo a extremos maniqueístas, o que é compreensível, mas é preciso ter um certo equilíbrio. Quando digo isso, sentem ódio de mim.

Capa do livro "E por olhar tudo, nada via", da escritora mexicana Margo Glantz, publicado pela editora Relicário Foto: Reprodução / Divulgação
Capa do livro "E por olhar tudo, nada via", da escritora mexicana Margo Glantz, publicado pela editora Relicário Foto: Reprodução / Divulgação

“E por olhar tudo, nada via”

Autora: Margo Glantz. Tradução: Paloma Vidal. Editora: Relicário. Páginas: 240. Preço: R$ 45,90.