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Cultura

Arnaldo Antunes lança disco íntimo com verve política, à beira de seus 60 anos

Cantor e compositor volta com 'O real resiste', álbum em que fala do país, mas também de amor, morte, da família e dos índios
O cantor e compositor Arnaldo Antunes Foto: Marcia Xavier / Divulgação
O cantor e compositor Arnaldo Antunes Foto: Marcia Xavier / Divulgação

RIO -  Em 2018, abalado pelo assassinato do capoerista Môa do Katendê em meio a uma discussão política horas após o primeiro turno da eleição presidencial, o cantor e compositor Arnaldo Antunes soltou na internet o poema-desabafo "Isto não é um poema" . Em dezembro do ano passado, ele foi um dos vários artistas de renome da MPB que participaram de "Para onde vamos?", canção de alerta para o perigo das mudanças climáticas . E esta sexta-feira, volta à cena com "O real resiste" , álbum batizado com o título de uma canção lançada há três meses e que na época teve seu videoclipe retirado sem explicação da grade da programação da TV Brasil.

O episódio foi lembrado por Arnaldo no início de janeiro, na abertura do Festival Verão Sem Censura , que apresentou, em São Paulo, uma agenda cultural com shows, peças, filmes e exposições que foram alvos de críticas ou de dificuldades impostas pelo governo federal ou por entidades relacionadas a ele.

"O real resiste" fala, segundo o artista, "fala desse momento em que você vê gente defendendo a tortura, a ditadura e a Censura, e negando o aquecimento global".

— São manifestações a que fui levado por uma coisa quase passional — admite Arnaldo, em entrevista por telefone. — Acho que a gente está vivendo um período radical de ameaça à democracia e as pessoas precisam se manifestar. Não digo que um artista deva fazer uma canção para falar da situação do país, o que falo é da manifestação das pessoas como cidadãos, integrantes de uma sociedade democrática, que defendem o direito à educação, à cultura, à pesquisa científica e à liberdade de expressão.

Expressão de uma indignação diante das “insanidades” presenciadas no cotidiano brasileiro, “O real resiste” é, para Arnaldo, a “canção mais ostensivamente política” em um disco no qual o “real” tem um significado mais amplo, abarcando os temas do amor, da morte, da família, dos índios...

— É um real que se multiplica em questões — conta ele que, por exemplo, saiu de uma temporada entre os índios Yawanawás, no Acre, com duas das canções para o álbum, “Língua índia” e “Dia de oca”. — Foi uma experiência muito rica de aprendizado e valorização dessa cultura. “Dia de oca” foi inteiramente composta na aldeia, realmente de forma a chamar atenção para o valor desse tipo de civilização. Foi uma imersão na vida dos indígenas, que também estão sendo muito ameaçados hoje.

Já "João", parceria com o violonista Cézar Mendes , é um tributo ao gênio de João Gilberto, o pai da bossa nova, falecido aos 88 anos em julho do ano passado .

— Ela acabou se tornando uma canção muito importante para o disco, é uma música que reforça esse reconhecimento da cultura brasileira através da figura do João, que é imensa. Fiquei muito grato por ter feito essa homenagem e ter conseguido mostrar a ele — diz Arnaldo.

Se para celebrar os seus 50 anos de idade, o músico fez a canção "Envelhecer" (gravada em 2010 no CD/DVD "Ao vivo lá em casa" ), agora, à beira dos 60 (que completa dia 2 de setembro), ele gravou "Termo morte", resultado de suas reflexões sobre a finitude carnal.

— Nada disso é intencional, mas um dia a gente tem que se deparar com a ideia de morte — explica ele. — Essa música surgiu a partir de um poema publicado há tempos e tem um pouco a ver com o fato de essa perspectiva da morte estar mais presente na minha vida com o avanço da idade. Ela é inevitável para qualquer pessoa que chega à terceira idade, que começa a pensar em que tipo de morte quer ter.

Detalhe da capa do álbum "O real resiste", de Arnaldo Antunes Foto: Reprodução
Detalhe da capa do álbum "O real resiste", de Arnaldo Antunes Foto: Reprodução

Depois de "RSTUVXZ" (2018), um álbum de rocks e sambas ("dois gêneros que priviliegiavam muito a coisa rítmica"), produzido pelo baterista Curumim , Arnaldo resolveu concentrar-se na canção, adotando "uma interpretação mínima, sem bateria e sem percussão" — da mesma forma que em discos anteriores como "Qualquer" (2006) e "A curva da cintura" (de 2011, com o guitarrista Edgard Scandurra e o músico do Mali Toumani Diabaté ). Gravado em uma semana no sítio-estúdio Canto da Coruja, no interior de São Paulo, "O real resiste" reuniu uma banda formada por Cézar Mendes (violão de nylon), Daniel Jobim (piano) Dadi (guitarra, baixo e ukulele) e Chico Salem (guitarra e violões de aço e nylon).

Entre as participações especiais do disco estão, nos vocais, os da mulher de Arnaldo, Marcia Xavier (na apaixonada parceria “De outra galáxia”), e da filha Celeste Antunes (que em breve lança trabalho solo).

— É meio natural misturar as relações afetivas com as relações de trabalho. Quem toca comigo acaba virando meio família, e a família acaba fazendo som junto — explica.

Em março, Arnaldo Antunes cai na estrada com o show de "O real resiste". Nele, será acompanhado apenas por um pianista — o jovem e consagrado pernambucano Vitor Araújo — e alternará canções do novo disco com outras de várias fases de sua carreira (como "Debaixo d'água", "Lua vermelha", "Socorro", "Vilarejo", entre outras) e poemas falados, entoados, sussurrados e filtrados por efeitos. O cenário e as projeções serão de Marcia Xavier.

Dia 11 de junho o músico se apresenta no festival Primavera Sound, no Porto, em Portugal, ao lado de atrações internacionais como Tyler, the Creator e Beck. O show que ele leva, no entanto, não é o do novo álbum, mas o de sambas e rocks do anterior, "RSTUVXZ".

Crítica

A canção em primeiro plano

Por Luccas Oliveira

Depois da agitação rítmica proposta em “RSTUVXZ”, álbum em que explorou fricções entre o samba e o rock, poderia soar descompassada a opção artística de Arnaldo Antunes por um trabalho centrado no piano e em instrumentos de cordas, desprovido de batuques. Mas, ao equiparar o movimento de rotação da Terra com “essa voz e esse violão” de João Gilberto em “João”, faixa que abre “O real resiste”, o músico paulistano exime o ouvinte de qualquer dúvida: este não é um disco que prima por um conceito sonoro, mas sim pela poesia de flertes concretistas de Arnaldo.

A ambientação sonora caminha pela serenidade e a elegância, esbarrando na bossa nova (“Devagarinho”), no jazz (“O real resiste”), sem esquecer da predileção pelo rock (“Dia de oca”) e pelo samba (“Onde é que foi parar meu coração”). E a opção por gravar as dez faixas com a mesma formação, com os músicos tocando quase sempre juntos, dá à experiência uma uniformidade que contrasta com o leque extenso de tópicos e temas explorados pelo compositor.

O clima intimista permite a Arnaldo “saborear as sílabas”, como ele mesmo diz, de sua poesia cantada. Com essa cadência, ele tanto narra a idealização da morte perfeita (“Venha sem aviso/ Invisível/ E me leve o mais subitamente/ Possível”, de “Termo morte”) quanto exalta a paternidade (“Meu rebento/ Meu bebê/ Quando crescer/ Na barriga do vento/ Sua asa batendo hei de ver”). Mas o grande triunfo poético é mesmo a politizada “O real resiste”, que, ao repudiar horrores que se repetem na História mais do que deveriam (autoritarismo, xenofobia, homofobia, fanatismo), consegue ter o calor de hoje sem o risco de soar datada.

Cotação: bom.