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Adiada em um ano, Bienal de Arquitetura de Veneza abre para o público em busca de novas formas de convivência

Pavilhão nacional foi inaugurado por Mario Frias, que ignorou obra com temátiica indígena e não soube dizer quem era Lina Bo Bardi, arquiteta ítalo-brasileira homenageada no evento
Vista do pavilhão brasileiro: curadoria aborda desde projetos modernos icônicos até ocupações em prédios abandonados Foto: Riccardo Tosetto/Divulgação
Vista do pavilhão brasileiro: curadoria aborda desde projetos modernos icônicos até ocupações em prédios abandonados Foto: Riccardo Tosetto/Divulgação

Adiada em um ano por conta da pandemia de Covid-19, a 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza abre finalmente suas portas ao público amanhã. O tema “Como viveremos juntos?” foi proposto pelo curador desta edição, o arquiteto libanês Hashim Sarkis, antes da crise sanitária global, mas os desafios impostos pelo coronavírus acrescentaram novas camadas aos projetos das 46 representações nacionais, incluindo o Brasil. Ontem, o pavilhão brasileiro, intitulado “Utopias da vida comum”, foi inaugurado virtualmente com uma live, c om a participação do secretário especial da Cultura, Mario Frias, diretamente de Veneza . Em uma fala rápida, ele se disse orgulhoso em ver que o pavilhão retratava a “alegria do povo brasileiro” e “o homem comum”. Uma visão ufanista que não condiz exatamente com o conjunto apresentado na Bienal.

— Somos um povo tradicionalmente caloroso, amigável. É emocionante chegar aqui e reconhecer esses sentimentos tão nobres e tão importantes para nossa nação na Bienal — declarou Frias no vídeo, gravado na fachada do pavilhão do Brasil.

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A representação nacional revê momentos da arquitetura brasileira, desde projetos modernos icônicos, realizados entre o fim do Estado Novo e os anos JK (1946 e 1961), até soluções para vencer a desigualdade habitacional das grandes metrópoles. Um dos dois vídeos comissionados para a mostra, exibido durante a visita de Frias, retrata o cotidiano de famílias pobres que ocupam um imóvel abandonado na capital mineira.

O projeto brasileiro, assinado pelo escritório mineiro Arquitetos Associados (de Alexandre Brasil, André Luiz Prado, Bruno Santa Cecília, Carlos Alberto Maciel e Paula Zasnicoff) e o designer visual Henrique Penha, mapeia a presença das utopias na constituição do país, desde a cosmovisão guarani da “Terra sem Males” até a ocupação Maria Carolina de Jesus, na região central de Belo Horizonte (MG).

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— Dificilmente teremos ciclos de crescimento econômico como os que coincidiram com o auge da arquitetura moderna no Brasil. Talvez a gente não precise mais construir, como muitos arquitetos pensam hoje no mundo. No contexto brasileiro, o déficit habitacional equivale ao número de imóveis vazios — observa Bruno Santa Cecília. — A reconversão destes edifícios abandonados nas regiões centrais garantiria aos mais vulneráveis o melhor lugar na cidade, ao mesmo tempo em que reverteria o aspecto da degeneração urbana.

Visitantes no pavilhão chileno durante a pré-abertura da Bienal para o público Foto: MARCO BERTORELLO / AFP
Visitantes no pavilhão chileno durante a pré-abertura da Bienal para o público Foto: MARCO BERTORELLO / AFP

Outra obra brasileira, fora da representação oficial do país, não foi vista pelo secretário. Antes de gravar sua fala para a live, Frias e a comitiva da secretaria passaram pelo pavilhão central da Bienal, onde está montada a videoinstalação “Oca Red”, criada de forma colaborativa pelo designer Gringo Cardia e o cineasta Takumã Kuikuro. A obra teve a parte audiovisual gravada na aldeia dos kuikuro, no Alto Xingu (MT). Financiado pela ONG People’s Palace Projects, que tem apoio da Queen Mary University de Londres, o trabalho propõe formas de viver conectadas com a natureza e a proteção dos povos originários. Frias e a comitiva não se detiveram na instalação.

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Obra de Gringo Cardia e Takumã Kuikuro propõe formas de viver conectadas com a natureza e proteção dos povos originários.
Obra de Gringo Cardia e Takumã Kuikuro propõe formas de viver conectadas com a natureza e proteção dos povos originários.

— Conseguimos passar até agora sem mortes por Covid-19, mas sabemos que somos um dos grupos mais vulneráveis neste momento — conta Takumã, de sua aldeia. — No ano passado enfrentamos o pior período de queimadas que já vi, a fumaça piora muito os sintomas respiratórios. Espero que as pessoas vejam em Veneza que nós queremos respeito, poder viver sem sermos atacados.

— Muitos dos problemas levantados na Bienal foram criados pela forma de pensar a natureza só como recurso. Estamos propondo um projeto para o futuro, baseado na sabedoria ancestral de que é possível habitar e conviver sem destruir — complementa Gringo.

Instalação 'Oca Red', criada por Gringo Cardia e Takumã Kuikuro Foto: Gringo Cardia/Divulgação
Instalação 'Oca Red', criada por Gringo Cardia e Takumã Kuikuro Foto: Gringo Cardia/Divulgação

A Bienal deste ano terá um destaque extra para o Brasil na homenagem a Lina Bo Bardi (1914-1992), que receberá o Leão de Ouro Especial pelo conjunto da obra. Italiana naturalizada brasileira, a arquiteta assinou projetos icônicos, como o prédio do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e a revitalização do Sesc Pompeia e do Solar do Unhão, em Salvador.

— O trabalho da Lina é exemplar na forma de ver o arquiteto como um agente que vai além da construção, pensando na responsabilidade social por trás de cada projeto. Está totalmente conectado com a proposta do evento — destaca o brasileiro radicado nos EUA Gabriel Kozlowski, curador assistente de Hashim Sarkis na Bienal.

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Contudo, a trajetória de Lina, aparentemente, não é conhecida pelo secretário da Cultura. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Frias pediu uma “cola” à repórter ao ser perguntado sobre a homenagem à arquiteta: “Eu não conheço nada, desculpa! Me ajude”.

A representação brasileira em Veneza é orçada em R$ 1,1 milhão, dividido entre o governo federal (R$ 800 mil) e a Fundação Bienal de São Paulo (incluindo ainda custos indiretos, ainda não finalizados).