Cultura Artes visuais

As ‘galáxias’ de Haroldo de Campos e Antonio Dias, 40 anos depois

Editora de livros artesanais lança múltiplo idealizado pelo poeta e pelo artista nos anos 1970

Um dos objetos idealizados por Antonio Dias, usando cartazes e bilhetes de trem;
Foto:
Maurício Nahas
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Divulgação
Um dos objetos idealizados por Antonio Dias, usando cartazes e bilhetes de trem; Foto: Maurício Nahas / Divulgação

RIO — Há cerca de 40 anos, o poeta Haroldo de Campos e o artista Antonio Dias, amigos e admiradores mútuos, idealizaram um projeto: transformar em objeto de arte o livro “galáxias”, que Haroldo começara a publicar em textos esparsos, só em 1984 reunidos numa edição. Não era uma tarefa fácil. O próprio Haroldo, um dos pilares da poesia concreta no Brasil, descreveu seus escritos, certa vez, como “audiovideotexto, videotextogame” — um encadeamento tempestuoso de ideias, sem pontuação, parágrafos, ocupando cada um deles o mesmo espaço numa página. Unidade temática? “A viagem como livro e o livro como viagem”, disse ele.

E tudo levaria a crer que os amigos viajavam, eles também, nas conversas.

— Sempre que a gente se encontrava, falava do projeto, mas ele não evoluía. Ninguém conseguia fazer o cálculo de quanto iria custar — conta Dias. — Mas pouco antes de Haroldo morrer (em 2003, aos 73 anos) fui visitá-lo e ele pediu: “Poxa, Antonio, faz um esforço, faz aquele múltiplo das ‘galáxias’”.

Quarenta e dois anos depois, o múltiplo “galáxias”, assinado por Haroldo de Campos e Antonio Dias, será lançado neste sábado na Casa Daros. Trata-se de uma caixa de 50cm x 70cm, pesando nove quilos, contendo dez caixas menores. Estas, quando quando abertas, revelam dois objetos que se completam. No total, são 32 peças.

— Tínhamos uma ideia-base, de que essas caixas poderiam se abrir e formar uma espécie de exposição galáctica, solta no espaço — conta o artista, que se baseou na própria ideia contida nas galáxias de Campos, de textos altamente biográficos. — Procurei seguir do Haroldo essa viagem, esse lugar, essa língua, essa experiência, esse amor contidos nos textos; fui juntando as imagens que se referiam a isso, um pouco levado pelo que eles solicitavam, mas nunca como uma mera ilustração.

Assim, o próprio trabalho de Dias sobre os textos do amigo — as “proesias”, como disse certa vez Caetano Veloso — tem algo de biográfico. Numa das caixas, há uma pequena instalação com cartazes de estações ferroviárias e bilhetes de trens que o próprio artista, morador de Milão por décadas, usou. Em outra, reproduz sua obra “Projeto para o corpo” (1970), com algumas camadas de papel celofane sobre a parte central do objeto, escondendo e revelando o texto de Campos. Outro objeto, que tem na capa as palavras “Glass words”, abre-se como um livro — e traz, na página da esquerda, o espelho necessário para ler o texto, invertido, na página à direita. Um outro, ainda, reproduz uma cena com Dias do filme “Ver/ouvir”, de Antonio Carlos da Fontoura. Num papel pergaminho dobrado em oito, além do texto das “galáxias”, há outras seis páginas riscadas como se fossem o layout de um livro. No total, há dez obras de Dias reproduzidas, a maioria do período da concepção do múltiplo, como “Poeta/pornógrafo” (1973).

O projeto só foi tocado porque Antonio Dias, como conta, arranjou um editor “louco o suficiente” para produzi-lo. No caso, editora: Lucia Bertazzo, da UQ/Aprazível Edições. Ela diz que nos últimos quatro anos teve reuniões semanais com o artista. O orçamento que impossibilitou o projeto de seguir adiante enquanto Haroldo de Campos era vivo só será concluído agora, com a finalização do múltiplo.

Foram pelo menos 25 fornecedores, de materiais como madeira, espelho, papel de folha de bananeira, pergaminho, entretelas, além do emprego de diferentes e custosas formas de impressão. Uma artesania que tem seu preço. Cada caixa produzida manualmente — em tiragem numerada de 1 a 93, e mais uma série de A a Z — custa R$ 45 mil. Preço de obra de arte, que ela efetivamente é. Metade já foi vendida para colecionadores e museus, como a Pinacoteca do Estado de São Paulo, as coleções João Sattamini e Gilberto Chateaubriand. O MoMA, de Nova York, aceitou a doação de uma, por um colecionador brasileiro, para compor o seu acervo.