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Cultura Artes visuais

Bienal de São Paulo debate tensões políticas e sociais do presente a partir de abordagem histórica

Adiada em um ano, mostra vai abrir no sábado seguindo protocolos sanitários e determinações municipais, como a exigência de comprovante de vacinação
Visão geral da Bienal de São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Visão geral da Bienal de São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Título da 34ª Bienal de São Paulo, que será inaugurada neste sábado (4), o penúltimo verso do poema do "Madrugada camponesa", do amazonense Thiago de Mello, "Faz escuro mas eu canto" ganhou subsequentes camadas de leitura desde que a equipe curatorial, comandada pelo italiano Jacopo Crivelli Visconti, começou a idealizar o evento, inicialmente previsto para ser realizado no ano passado . A escolha do verso escrito em 1963, que enseja tanto resistência como esperança (o peoma termina com "porque a manhã vai chegar"), já apontava em 2019 questões políticas e sociais posteriormente agravadas pela pandemia. A seleção  responde a processos históricos que se relacionam também ao momento atual, no qual a coletiva principal abre ao público no Pavilhão da Bienal a poucos dias de um Sete de Setembro temido como ameaça de uma ruptura institucional.

Na coletiva de imprensa realizada na manhã desta quinta, em que estiveram presentes cinco membros da equipe curatorial (Visconti, Paulo Miyada, Carla Zaccagnini, Ruth Estévez e Francesco Stocchi) e o presidente da Fundação Bienal, o colecionador José Olympio Pereira , o curador geral falou sobre como obras e itens expostos na mostra buscam reflexões sobre questões atuais e históricas. Visconti citou, como exemplo, o sino de 1750 da capela do Padre Faria, de Ouro Preto (MG), que teria sido o único a ser tocado no dia da morte de Tiradentes, em 1792, e em 1960 levado para Brasília, para ser ouvido na inauguração da nova capital.

—  Falar sobre o momento atual a partir de uma perspectiva histórica foi uma das questões que mais nos interessou na curadoria. O sino de Ouro Preto representa estas idas e vindas temporais, tocado no momento da execução de alguém que era considerado um inimigo do Estado, e, posteriormente, usado para homenageá-lo, na inauguração de Brasília —  ressalta o italiano radicado no Brasil. — Não por acaso, o sino está exposto junto a obras da Carmella Gross, que também traz trabalhos apresentados por ela na Bienal do Boicoite (1969), durante a ditadura. Próximo, temos obras da Regina Silveira, que mostram sobras projetadas de militares e tanques, como os que a gente viu recentemente desfilando nas ruas. Eventos como a Bienal permitem que um público muito diversificado possa ser colocado em fricção com estes acontecimentos, históricos e do presente.

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Carmela, que também inaugura hoje no MAM do Rio a instalação “Vulcão”, tem 160 monotipias da série “Boca do inferno” expostas na Bienal junto ao meteorito Santa Luzia, que resistiu ao incêndio do Museu Nacional, em 2018 , e foi levado a São Paulo:

— As obras atuais e da Bienal de 1969 se conectam. “Boca do inferno” representa a nossa realidade que, se não é pior, se iguala à do período da ditadura.

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Curador adjunto, Paulo Miyada acredita que, mesmo sem alterar profundamente o conceito pré-definido, a pandemia trouxe uma leitura que talvez tenha tornado o “canto” mais evidente que o “escuro”.

— Quanto mais emergencial é o contexto em que a gente vive, cada encontro, cada mínimo gesto ganha outra intensidade. Coisas que há dois anos seriam triviais hoje têm muito mais intensidade — comenta o curador de 36 anos. — Com um “escuro” institucional, político, social tão evidente, talvez na sua forma mais palpável para a nossa geração, a existência do “canto” se torna mais emocional.

Com 91 participantes (incluindo dois duos e um coletivo) e mais de 1,1 mil obras , o evento vai receber o público a partir de protocolos sanitários elaborados pelo Hospital Nove de Julho e seguindo determinações da prefeitura de São Paulo, como a obrigatoriedade do comprovante de vacinação . José Olympio enfatizou que, pelas proporções do Pavilhão, de 35 mil m², a organização descartou a necessidade de agendamento, levando em consideração a possibilidade de manter até 1,5 mil pessoas por andar, com distanciamento seguro.

A curadoria destacou ainda a tentativa da seleção de promover uma seleção mais equânime, com nomes de cinco continentes, maior equilíbrio entre homens e mulheres, 4% de artistas identificados como não-binários e cerca de 10% representantes de povos originários, de várias partes do mundo. Na semana passada, Jaider Esbell, artista da etnia macuxi que participa da Bienal, fez uma performance em frente à entrada do Pavilhão, com um cartaz com os dizeres: “A Bienal dos Índios —  AIC”. A sigla vem de Arte Indígena Contemporânea, movimento iniciado em 2013 por Esbell —  que viveu até os 18 anos na região demarcada em 2005 como a reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima —  com outros artistas indígenas do Estado.

— A minha luta aqui é a mesma que está acontecendo em Brasília, para não deixar o Marco Temporal passar. Este pavilhão é um parlamento, estou atuando aqui como um advogado indígena, como um parlamentar indígena. — destaca Esbell, que apresenta na coletiva a série de pinturas “A guerra dos Kanaimés” (2020). — Quando me convidaram, falei que não queria estar aqui sozinho, só entraria se fosse com a corporificação da minha política de ser indígena, para a sociedade branca escutar a realidade que ela minimiza e apaga. Esta luta não é só dos indígenas, é para preservar a vida de todo mundo, dos nossos netos.

Além das obras da coletiva no Pavilhão, a Bienal tem 19 mostras paralelas em instituições parceiras, como “Lamento das imagens”, do chileno Alfredo Jaar, em cartaz no Sesc Pompeia. Na Bienal, Jaar traz uma série de registros de Nguyen Thi Thuy, criança vietnamita fotografada por ele num campo de refugiados de Hong Kong, em 1994. Na entrada do pavilhão, pôsteres com uma frase de Antonio Gramsci sobre oo fascismo italiano são distribuídos ao público.

— Os trabalhos se conectam com o momento do mundo. Temos hoje 76 milhões de refugiados pelo globo, mas só é possível gerar empatia quando consigo reduzir esse número à escala de uma pessoa — explica Jaar. — A frase do Gramsci, sobre monstros que nascem no intervalo entre o claro e o escuro, pode servir para o Brasil, os Estados Unidos, a Polônia, a Hungria. Os espaços da arte são os únicos que se mantém livres, e é bom ver nesta Bienal vozes dissonantes surgindo.

Onde: Pavilhão Ciccillo Matarazzo — Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº, Parque Ibirapuera. Tel: (11) 5576 7600. Quando: Ter, qua, sex e dom, de 10h às 19h; qui e sáb, de 10h às 21h. Até 5/12. Acesso mediante comprovante de vacinação contra Covid-19. Quanto: Grátis. Classificação: Livre.