Cultura Artes visuais

Djanira, de boia-fria a uma das maiores pintoras do país

Artista que faria 100 anos é tema de exposição e tem história relembrada

Autodidata e convicta. A pintora em 1967: “A maturidade não se força. Tudo o que fiz foi em lenta prepação. Graças a Deus não sou habilidosa”
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Autodidata e convicta. A pintora em 1967: “A maturidade não se força. Tudo o que fiz foi em lenta prepação. Graças a Deus não sou habilidosa” Foto: / Reprodução

RIO - Djanira trabalhou em lavoura de café, em criação de gado, em cozinha de família, foi modista, chapeleira e costureira antes de tocar num pincel pela primeira vez quando, aos 23 anos, em 1937, internada num sanatório para se tratar de tuberculose, viu na parede um desenho de Jesus Cristo e brincou: “Isso até eu faço”.

Saiu do hospital para morar em Santa Teresa e lá abriu uma pensão. Assim, vivia de costurar para damas cariocas e alugar quartos para artistas — mas se fechava na cozinha à noite, quando todos dormiam, para desenhar. Aos poucos, em seu ateliê de costura, moldes de saias, rendas, fitas e retalhos conviviam com incontáveis desenhos sobre papel.

Num depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS) em 1967, ela se lembrou daquele tempo: “Uma moça da Suíça francesa me pediu para lhe fazer um vestido, chegou ao meu ateliê, viu aquela porção de desenhozinhos na parede e perguntou: ‘De quem são?’. Eu disse: ‘São meus’. Ela: ‘Não, eu quero saber quem fez’. Eu disse: ‘Fui eu’. E ela: ‘Então você é uma artista!’. Eu falei: ‘Não, isso é brincadeira minha’”.

A moça lhe apresentou o pintor Emeric Marcier (1916-1990), que, diante dos desenhos de Djanira, manteve o diagnóstico: “Você é artista”. Ela reclamou: “Não queria que ninguém me chamasse de artista. Achava que, para ser artista, tinha que saber muita coisa que eu não sabia. Artista, para mim, era sagrado”.

Na próxima quinta-feira, Djanira faria 100 anos. Morreu em 1979, “sagrada”, com uma extensa obra em pintura e comparada, por críticos de arte, a Alfredo Volpi e a Heitor Villa-Lobos — em 1948, o crítico Rubem Navarra diria: “Vemos uma Djanira suburbana e requintada, um processo psicológico parecido ao da música de Villa-Lobos, que, partindo do chorinho, encontrou um dia a técnica de Bach”.


“Autorretrato” (1944): obra em exposição na Caixa Cultural do Rio, na mostra “Djanira: pintora descalça”
Foto: Divulgação/Rafael Adorjan / Divulgação/Rafael Adorjan
“Autorretrato” (1944): obra em exposição na Caixa Cultural do Rio, na mostra “Djanira: pintora descalça” Foto: Divulgação/Rafael Adorjan / Divulgação/Rafael Adorjan

Sua obra está concentrada no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio, dono do maior acervo da artista, com 814 obras. A coleção Gilberto Chateaubriand tem 16 pinturas, e o Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio, outras quatro. Agora, uma seleção de 40 obras da artista pode ser vista na Caixa Cultural do Rio até 20 de julho. “Djanira — Pintora descalça” reúne telas que ela dedicou ao trabalho (um de seus temas favoritos), como “Trabalhadores de cal” (1974), retratos e paisagens, como “A fazenda” (1966). O MAM também expõe uma de suas pinturas, a recém-restaurada “Fazenda de chá no Itacolomi” (1958), em mostra até o dia 29.

No mercado, suas pinturas também passam por valorização. Nos anos 1960, a própria pintora denunciou falsificações que baixaram o preço de seus trabalhos. Nos anos 1980, seus óleos custavam entre um e três milhões de cruzados — “preços surpreendentemente baixos”, dizia uma reportagem da época, no “Jornal do Brasil”. Recentemente, uma tela de sua autoria foi arrematada por R$ 100 mil em um leilão no Rio.

No início da carreira de artista, Djanira precisou rebater o rótulo de naïf ou primitiva. Isto porque aprendeu a desenhar sozinha, e das poucas aulas que fez no Liceu de Artes e Ofícios no Rio, não gostou — não conseguia obedecer ao professor, gostava de estar com seu cavalete na natureza, não era uma pintora de ateliê. “Era movida por liberdade e tinha um mundo muito peculiar”, lembra a amiga Anna Letycia, de 84 anos, que viajou com Djanira rumo ao Maranhão nos anos 1950.

— Ela se achava muito forte, muito valente. Tinha poucas vacas lá, sabe? E ela resolveu tomar leite. Acontece que as vacas comiam muito sal, e ela teve um desarranjo que nos obrigou a ir embora de avião — diverte-se Anna, que continua rindo entre as memórias daquela viagem. — Mesmo no hotel, Djanira dizia que preferia dormir em rede. Mentira dela! Acordava toda desconjuntada! Ela era muito engraçada. Tinha um ritmo de trabalho muito intenso. Carregava o cavalete para o meio da natureza e não parava. Às vezes, nós pintávamos a mesma coisa e ( o tema ) saía diferente. Eu dizia: ‘Como pode, Djanira?’. É que ela via diferente. Ela vivia num mundo particular.

Nesse mundo, estavam o papagaio Liberdade (que, mesmo depois da morte da artista, gritava “Nira! Nira!” horas a fio na Rua Mauá, em Santa Teresa), os cachorros Samambaia, Safena, Sagarana e muitos outros (eram tantos, que faltam registros dos nomes de todos os bichos). No mundo peculiar de Djanira, coube ainda a religião. Ela se tornou freira da Ordem das Carmelitas em 1972, numa cerimônia em casa, ao som de Mozart, Bach e do tilintar de taças de champanhe. “A vida difícil”, completa Anna Letycia, não fez da artista “uma pessoa amarga ou retraída”.

DO INTERIOR PARA NOVA YORK

A própria Djanira, no depoimento ao MIS em 1967, disse que não enveredou pela arte para se refugiar das dores do passado. “Pintar foi por pura vocação. Era uma força maior do que eu”, disse a pintora, que não passou da escola primária e conheceu a história da arte já madura, acessando a preciosa biblioteca de Marcier. Nunca se apressou em “despontar” num cenário em que Di Cavalcanti, Portinari e Pancetti brilhavam. Costumava dizer: “A maturidade não se força. Tudo o que fiz foi em lenta preparação. Graças a Deus não sou habilidosa”.

Quando menina, Djanira tratou apenas de sobreviver. Os pais a abandonaram numa cidadezinha em Santa Catarina quando tinha 2 anos. Deixaram-na em casa de vizinhos, prometendo buscá-la em 15 dias. A menina passou 14 anos à espera. Os pais nunca voltaram.

“Fiquei longe de tudo quanto fosse parente. Eu era uma intrusa numa casa que não era para mim. Todos os dias eu escutava isso: ‘Essa menina está aqui, e nós não podemos sustentá-la.’” Para evitar os insultos, trabalhava como boia-fria, cuidava da cozinha da família, mas “sabia, dentro de mim, que tinha que fazer uma coisa que não era aquela vida cotidiana de fazenda de café ou então do Sul do Brasil, lidando com gado”.


“A fazenda” (1966): artista retratou o ambiente rural, onde passou parte da infância, em diversas telas
Foto: Divulgação/Rafael Adorjan
“A fazenda” (1966): artista retratou o ambiente rural, onde passou parte da infância, em diversas telas Foto: Divulgação/Rafael Adorjan

Quando veio ao Rio, logo depois da temporada num sanatório paulista para se tratar de tuberculose, casou-se com um maquinista da Marinha — e a relação teve final trágico: ele morreu trabalhando num submarino brasileiro torpedeado pelo exército alemão.

Para sobreviver de novo, Djanira alugou quartos num casarão em Santa Teresa e os sublocou. Aos primeiros hóspedes pediu pagamento antecipado, a fim de comprar colchão e roupa de cama. Os artistas gostavam de sua comida e muitos lhe davam aulas em troca de refeições — entre eles, Milton Dacosta, com quem namorou por curto período e com quem partiu aos Estados Unidos, depois de ganhar um prêmio de viagem num salão de artes visuais.


A tela “Trabalhadores de cal” (1974): Djanira se dedicou a retratar trabalhadores e seus diversos ofícios
Foto: Divulgação/Rafael Adorjan / Divulgação/Rafael Adorjan
A tela “Trabalhadores de cal” (1974): Djanira se dedicou a retratar trabalhadores e seus diversos ofícios Foto: Divulgação/Rafael Adorjan / Divulgação/Rafael Adorjan

A pintura de Pieter Bruegel, Fernand Léger, Joan Miró e Marc Chagall, com que tomou contato em Nova York, no fim dos anos 1940, deixaria marcas na trajetória de Djanira, segundo o crítico Frederico Morais.

— Ela criou algumas perspectivas depois que lembram perspectivas de Bruegel — avalia Morais. — Está entre as grandes pintoras brasileiras. A pintura de Djanira ensina a ver o Brasil. Ela não tinha uma cultura livresca, mas dizia: “Eu sou formalista e sou Brasil”. Os concretos nunca aceitaram uma pintura ligada a uma temática brasileira, e ela conseguiu ser formalista e brasileira.

Ainda em Nova York, a artista conheceria Maria Martins (1894-1973), que logo a acolheu. A escultora surrealista costumava dizer que Djanira bateu à sua porta com “uma cara de passarinho espantadinho”. Maria fazia questão de lembrar, em entrevistas, que um crítico americano definiu a amiga como “um Chagall dos trópicos”. Uma mostra de Djanira em Washington foi tema de uma coluna da primeira-dama Eleanor Roosevelt à época. Arrancou elogios.

Em 1947, de volta ao Brasil e já consagrada, a artista se mudou para a Bahia, onde conheceu o marido com quem ficaria até a morte, José Shaw Motta e Silva, o Mottinha. Ele, por sua vez, logo que ficou viúvo, casou-se com a melhor amiga de Djanira, Rachel Trompowsky, que ainda vive em Santa Teresa, entre algumas das obras da amiga pintora.

Foi na Bahia de seu amado Mottinha que Djanira fez um mural sobre o candomblé para a residência de Jorge Amado (1912-2001). Sobre ela, o escritor baiano escreveria:

“Sendo um dos grandes pintores de nossa terra, ela é mais do que isso, é a própria terra, o chão onde crescem as plantações, o terreiro da macumba, as máquinas de fiação, o homem resistindo à miséria. Cada uma de sua telas é um pouco do Brasil”.