Cultura Artes visuais

Há 80 anos, Pablo Picasso começava a pintar ‘Guernica’

Tela se mantém atual pela representação dos horrores do fascismo

O bombardeiro da pequena cidade de Guernica, no País Basco, pela Luftwaffe alemã, por ordem de Adolf Hitler, inspirou a tela de Picasso
Foto: Reprodução
O bombardeiro da pequena cidade de Guernica, no País Basco, pela Luftwaffe alemã, por ordem de Adolf Hitler, inspirou a tela de Picasso Foto: Reprodução

RIO - Em abril de 1937, Pablo Picasso buscava inspiração para um painel encomendado para o Pavilhão Espanhol da Exposição Universal a ser realizada em Paris, no mês seguinte. À época, o pintor malaguenho já era consagrado como um dos maiores nomes da arte do século XX, e tinha consciência da importância da futura obra, sobretudo pela chance de usar seu prestígio para dar visibilidade às forças republicanas que lutavam contra as tropas do general Franco desde o ano anterior, na Guerra Civil Espanhola. O tempo passava no atelier da Rue des Grands Augustins, e Picasso via esgotar seu prazo sem definir de que modo abordaria as questões intencionadas para a tela. No dia 26 de abril, a realidade da guerra se impôs de forma trágica como tema central, quando a pequena cidade de Guernica, no País Basco, foi bombardeada pela Luftwaffe alemã, por ordem de Adolf Hitler, aliado dos fascistas liderados por Franco.

O ataque, que resultou na destruição da cidade e deixou centenas de mortos e feridos, serviu de demonstração do poderio bélico da Alemanha, dois anos antes de início da Segunda Guerra. O mundo se chocou com as imagens da cidade em ruínas e dos corpos de civis atingidos pelo bombardeio ou metralhados enquanto fugiam: até então, este era um nível de brutalidade inimaginável para ataques sobre alvos não militares.

Profundamente impactado com as fotos e relatos vistos na véspera, Picasso começou a trabalhar as primeiras imagens para seu painel no dia 1º de maio. Um esboço inicial foi pintado dez dias depois, e no dia 4 de junho a imponente tela de 3,49 por 7,77 metros estava pronta para a Exposição Universal.

Picasso pinta 'Guernica': com 3,49 por 7,77 metros, tela virou símbolo da resistência à ditadura franquista
Foto: Divulgação
Picasso pinta 'Guernica': com 3,49 por 7,77 metros, tela virou símbolo da resistência à ditadura franquista Foto: Divulgação

Imediatamente tomada como símbolo da resistência à ditadura franquista e, posteriormente, a qualquer forma de opressão, “Guernica” chega à época atual, 80 anos depois, com a força das obras-primas, repleta de significados que transcendem seu tempo e as circunstâncias que lhe serviram de inspiração.

— “Guernica” está indiscutivelmente entre as obras fundamentais da História. Para além de todo o contexto em que foi criada, a sua dimensão mítica começa com a própria exigência de Picasso de que só fosse exibida na Espanha após a volta da democracia, razão pela qual ela só seria recebida no país quatro décadas mais tarde — observa o curador Marcello Dantas, responsável pela exposição multimídia “Mano a mano: La constitución de la España democratica”, realizada em 2003, em Madri. — Nenhum outro artista impôs condições tão ambiciosas para a exibição de uma tela, é algo de uma força simbólica absoluta.

Mediador da palestra do historiador britânico Timothy J. Clark sobre “Guernica” na Flip de 2013, o crítico e professor de História da Arte Paulo Sérgio Duarte destaca a obra como uma das mais importantes do século XX pela forma com que conjuga arte e política:

— Nos dias de hoje a arte política é, muitas vezes, uma coisa rebaixada, panfletária, muito evidente. O que se espera de uma obra de arte é sua potência poética, ela é a sua maior força. E “Guernica” é rica em potência poética, ela não se limita ao contexto histórico do bombardeio, aquele conjunto de imagens já adiantava os horrores que viriam dois anos depois com a Segunda Guerra e segue atual. Seu impacto permanece, 80 anos depois.

“UM MANIFESTO NELA MESMA"

Diretor cultural do Museu de Arte do Rio (MAR), o curador Evandro Salles acredita que o painel ganha contornos atuais com a volta de tendências conservadoras e xenófobas no mundo:

— A atualidade de “Guernica” pode ser medida por essa volta de movimentos políticos que beiram o fascismo, a intolerância, a xenofobia. A arte é o campo de cultivo da Humanidade, contra a violência. Naquele momento, Picasso sentiu a necessidade de se manifestar de forma radical contra a opressão, assumindo uma posição profundamente humanista frente à tragédia da guerra.

Marcelo Velloso também se assombra com a atualidade da obra, que, para ele, poderia simbolizar Aleppo, na Síria, ou a guerra urbana das favelas cariocas. O diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC), em Niterói, aponta aspectos estéticos do painel que também permitem leituras próximas da realidade presente.

— Como uma obra cubista, “Guernica” não dá ao espectador a noção de perspectiva, todas as imagens estão em um único plano. Hoje, mesmo com a mídia, as redes sociais e a chamada opinião pública, nós temos uma visão de mundo planificada, não há um aprofundamento do debate — observa Velloso.

O Museu Reina Sofia, em Madri, onde a tela 'Guernica' está exposta Foto: Divulgação
O Museu Reina Sofia, em Madri, onde a tela 'Guernica' está exposta Foto: Divulgação

Sob guarda espanhola definitiva após 1981, a tela pintada em preto, branco e cinza foi inicialmente exibida no Museu do Prado e desde 1992 está exposta no Museu Reina Sofía, em Madri, onde atrai cerca de três milhões de visitantes por ano. De 1939 até a década de 80, a obra ficou confiada ao Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York, até que a democracia fosse restaurada na Espanha. O painel chegou a ser exibido no Brasil, em 1953, na 2ª Bienal de São Paulo, após uma extensa negociação com o MoMA.

Para o crítico, professor e curador Luiz Camillo Osorio, “Guernica” é um exemplo do poder da arte para representar a dor coletiva:

— O artista está sempre atento ao que se passa e responde aos acontecimentos com seu trabalho. Picasso teve a capacidade de contestar os desdobramentos da guerra de forma não apenas ilustrativa, mas com força plástica gigantesca. Através da dimensão artística, ele abordou uma situação e deu a ela uma enorme potência pictórica. A tela é um manifesto nela mesma.