Em 1944, Candido Portinari já era consagrado entre os principais nomes da segunda geração modernista brasileira e havia pintado alguns de seus trabalhos mais célebres, como “Mestiço” e “O lavrador de café”, além de painéis de azulejos para alguns dos marcos da arquitetura nacional, como o Palácio Capanema, no Rio, e a Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte. Em meio a um ritmo intenso de produção (que resultou na intoxicação por chumbo, por alguns dos pigmentos utilizados, que o vitimaria em 1962), o pintor ainda conseguiu criar 45 figurinos e cinco painéis para o cenário do balé “Iara”, da companhia Original Ballet Russe, com músicas de Francisco Mignone. Este artista plural e de múltiplos interesses é o destaque da exposição “Portinari raros”, que será inaugurada depois de amanhã no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio, com 50 obras inéditas ou pouco conhecidas do artista.
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A mostra tem curadoria de Marcello Dantas, que também assina a exposição imersiva “Portinari para todos”, no MIS Experience, em São Paulo, em cartaz até 9 de agosto.
—As exposições são complementares. No MIS, levei as grandes pinturas e os painéis, de forma digital e monumental. No CCBB estão o lado B, aquelas outras coisas que a maioria das pessoas não sabia que Portinari tinha feito, e que são apagadas por suas obras icônicas — ressalta Dantas. — Mergulhando na obra dele, se tem a impressão de estar diante de um virtuose, que toca na Osesp um dia e no outro sobe com uma banda de rock num palco alternativo. Mas isso incorporado numa personalidade muito sóbria, rigorosa com o processo de trabalho, que pintava num ateliê limpíssimo.
Do ateliê do Cosme Velho saíram obras presentes na mostra carioca, a maioria para coleções privadas. Pelos cálculos de João Candido Portinari, filho do pintor e fundador do projeto que leva o seu nome, mais de 90% do que o pai produziu seguiu em mãos particulares, além de encomendas para empresas e instituições. Alguns destes trabalhos integram o acervo apresentado no CCBB, como “Paisagem com urubus” (1944), feito como estudo para o cenário do balé “Iara”; “A morte cavalgando” (1955), projeto para o painel duplo “Guerra e Paz”, instalado na sede da ONU, em Nova York, em 1956; “Tempestade” (1943), encomendada por Assis Chateaubriand; e “Menino soltando pipa” (1958), única cerâmica feita por Portinari em sua carreira. A mostra terá ainda a instalação digital “Carroussel raisonnée”, que apresenta, em sequência cronológica, todas as 4.932 obras catalogadas de Portinari, numa projeção de oito horas de duração. Criada para a Bienal de São Paulo de 2004, a instalação foi possível a partir do trabalho de 25 anos de João Candido para preservar e divulgar a obra paterna, para pesquisar e reunir toda a sua produção em um catálogo raisonnée.
— Além de marcar os 60 anos de morte dele, as exposições no Rio e São Paulo são importantes no contexto do centenário da Semana de 1922. Apesar de não ter participado do evento original, porque tinha 19 anos na época, meu pai foi amigo de alguns dos organizadores, como o Mario e o Oswald (de Andrade), e foi um nome fundamental para popularizar o modernismo, a partir dos anos 1930 — destaca João Candido, citando o crítico Mário Pedrosa, para quem “Portinari foi o aríete com que a arte moderna se tornou vitoriosa no Brasil”.
Dantas reforça a importância do pintor para a consolidação do pensamento modernista no país, após a década de 1930:
— A Semana de 1922 tem este peso de um marco inaugural do Brasil moderno, sem dúvida. Mas o processo se consolidou de fato a posteriori, sobretudo com esse trinômio Portinari, Niemeyer e Villa-Lobos. Eles projetaram e foram os motores dessa ideia de futuro para o país, ao ponto de a identidade nacional ficar quase que intrinsecamente vinculada a ela. Tem algumas figuras, como a deles e de outros de sua geração, a quem precisamos recorrer quando nos sentimos perdidos. Damos uma rebobinada na História para entendermos qual projeto de país estava sendo traçado ali.
Os trabalhos da exposição do CCBB do Rio serão divididos em seis núcleos temáticos, como “Fauna”, “Paisagens acidentais” e “Infância”, para destacar tanto a abrangência da produção de Portinari quanto sua dimensão. Pelos cálculos de Marcello Dantas, em seus 40 anos de carreira, a média do artista foi de uma obra a cada três dias.
— Dessa forma também é possível ver um artista experimental por trás do cânone. Portinari estava dialogando com as vanguardas do seu tempo, a todo momento — comenta o curador. — É possível ver inspirações surrealistas, cubistas, uma obra evocando (o espanhol Pablo) Picasso, outra (o italiano Giorgio) De Chirico. E a história da pintura é justamente essa, em que todos os artistas aprendem com as obras dos outros.
Entre os próximos planos do Projeto Portinari estão exposições dos painéis “Guerra e Paz” na Itália, no ano que vem, e na China, em 2024. As obras de 14 metros de altura e 10 metros de largura, que, instaladas no hall da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, guardam a entrada (“Guerra”) e a saída (“Paz”) da sala, foram expostas no Theatro Municipal do Rio (2010 e 2011) e no Memorial da América Latina (2012). As mostras futuras devem seguir os mesmos moldes.
— Meu pai levou quatro anos fazendo estudos preparatórios para poder pintar os painéis. Foram mais de 200 deles. Depois passou nove meses pintando. O (Enrico) Bianco, assistente dele, dizia que a sensação era de que tinham “parido dois filhos de 14 metros” — conta João Candido, recordando-se do pintor produzindo em casa. — Ele só pintava com luz natural, então aproveitava realmente cada minuto que conseguia para trabalhar. Era uma devoção profunda pelo trabalho e pela família.
Onde: CCBB. Rua Primeiro de Março 66, Centro (3808-2020). Quando: Seg e de qua a sab, das 9h às 21h; dom, das 9h às 20h. Abertura na quarta-feira. Até 12 de setembro. Quanto: Grátis, com ingressos na bilheteria do CCBB ou pelo site Eventim. Classificação: Livre.