Sheroanawe Hakihiiwe desenha o que não quer esquecer. Leva sempre um caderno consigo, no qual rabisca os símbolos que adornam os corpos de seu povo, os ianomâmis da Amazônia venezuelana, e o que cruza o seu caminho na floresta. Depois, ele desenha tudo de novo em folhas de papel artesanal, feito de fibras vegetais, usando tintas naturais, extraídas de folhas, frutas, animais e madeiras, como o urucum, de onde vem a cor vermelha.
A partir desta sexta-feira (30), 48 trabalhos do venezuelano podem ser apreciados na exposição “Sheroanawe Hakihiiwe: tudo isso somos nós”, que entra em cartaz no Masp, juntamente com outras duas mostras sobre “Histórias indígenas”, tema do ano na instituição: “Sala de vídeo: Sky Hopinka” e “Comodato Masp Landmann: cerâmicas e metais pré-colombianos”.
As três exposições reforçam o prestígio crescente da arte indígena, que ocupa cada vez mais museus e galerias mundo afora ao mesmo tempo em que as lutas pelos direitos dos povos originários se intensificam. Entre as 120 atrações da 35ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, divulgadas ontem, há 17 artistas indígenas.
Sentido de preservação
Nos desenhos, monotipos e nas pinturas em exibição do Masp, surgem imagens de extrema delicadeza: a coroa de um xamã, folhas de árvores amazônicas, uma teia de aranha.
As obras do venezuelano já foram descritas como “mapas de uma cosmovisão ancestral” por uma antiga colaboradora, a artista Laura Johnson Barbata. André Mesquita, cocurador da mostra com David Ribeiro, ressalta que um dos principais recursos usados por Sheroanawe é a repetição.
— Da mesma forma, como a pintura se espalha por todo o corpo dos ianomâmi, ele tenta abranger toda a folha de papel com o mesmo padrão geométrico — afirma. — A obra de Sheroanawe tem um sentido de preservação da cultura material e imaterial da comunidade onde ele vive. É um arquivo de histórias que correm o risco de ser dizimadas.
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Sheroanawe concorda com a avaliação do curador:
— Eu desenho para que nada disso se perca.
A poucos passos das obras de Sheroanawe, no subsolo do Masp, outra exposição é dedicada justamente aquilo que não se perdeu, mas resistiu ao tempo, às intempéries e à colonização. A mostra “Comodato Masp Landmann” apresenta 721 objetos criados entre os séculos IIa.C. e XVId.C. por povos ameríndios.
Segundo Marcia Arcuri, curadora da mostra ao lado de Leandro Muniz, a maioria das peças em exibição é proveniente de contextos ritualísticos, mas também eram apreciadas por seu valor estético. Ela explica que os padrões apresentados pela arte pré-colombiana evidenciam padrões que remetem ao que as diferentes cosmovisões ameríndias têm em comum.
— A relação dos povos indígenas com a natureza não é vertical, os animais e as plantas não são inferiores ao ser humano que, por sua vez, não é inferior aos deuses que reverencia — afirma.
Nação Ho-Chunk, dos EUA
O artista Sky Hopinka, da nação Ho-Chunk, dos EUA, afirma que, mais do que observar as convergências, o diálogo entre arte indígena de diferentes origens geográficas (como propõe o Masp) permite destacar como cada povo originário enfrenta a herança colonial. Este é o tema de “Kicking the clouds” (Chutando as nuvens), um dos dois vídeos do artista em exibição no museu — o outro é “Mnemonics of shape and reason” (Mnemônica de forma e razão). A curadoria da “Sala de vídeo: Sky Hopinka” é assinada por María Inéz Rodríguez.
“Kicking the clouds” mostra uma conversa entre o artista e sua irmã. Ela recorda como aprendeu palavras do luiseño, a língua de seu povo, com a avó, uma mulher que passou a se envergonhar de suas origens nativas após frequentar a escola.
— O que me interessa não é só a ancestralidade, mas como a compreendemos. Sei quem sou e quem é minha família. Mas como posso me relacionar com os meus para além dos conceitos de História, linhagem e transmissão de conhecimento legados pelo colonialismo? — diz Hopinka. — Antes dos museus olharem para nós, já fazíamos arte. Se eventualmente perderem o interesse, continuaremos fazendo arte.
O ianomâmi Sheroanawe Hakihiiwe conta que durante muito tempo não teve notícia da existência de outros artistas indígenas. Até conhecer nomes como o brasileiro Joseca Yanomami, que expôs no Masp no ano passado e a quem ele hoje descreve como um “irmão”.
— Eu pensava que era o único artista indígena da Venezuela. Depois, descobri outros indígenas que faziam arte em seus países, bebendo das fontes de sua própria cultura, em conexão com as montanhas, as selvas, os espíritos da água e da terra — conta ele, que planeja inaugurar um centro de divulgação da arte indígena na região onde nasceu.