Quando estava na escola, em Bauru (SP), os cadernos de Marcos Roberto eram sempre motivo de repreensão dos professores: algumas folhas continham apenas parte do conteúdo apresentado em aula, enquanto em outras a lição dividia espaço com seus desenhos. Na individual “Páginas para um tempo em branco”, que será inaugurada amanhã na galeria Movimento, na Gávea, Zona Sul do Rio, o artista paulista de 34 anos mostra uma boa justificativa em relação a seus antigos professores com a nova série, na qual reproduz os velhos cadernos em chapas de aço cortadas e pintadas como se fossem folhas de papel pautado.
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À distância, não é possível imaginar que as folhas amassadas, com bordas recém-destacadas da espiral, são na verdade chapas metálicas cortadas na oficina-ateliê que Marcos Roberto montou nos fundos de sua casa, em Bauru. As 18 obras da série tiveram toda a parte de pintura em esmalte industrial e óleo finalizada no Rio, no último mês, quando o bauruense participou da residência artística do Instituto Inclusartiz, na Praça da Harmonia, na Gamboa. Conversando com os moradores da região, ele encontrou inspiração para as pinturas de jovens estudantes da rede pública diante de uma tela, num museu.
— Venho de uma cidade sem muito incentivo à cultura, a primeira vez que pisei num museu foi aos 24 anos, na Pinacoteca, em São Paulo. Quando fui convidado para a residência no Rio, queria ver como é para os jovens daqui, que têm mais opções. Mas, falando com as pessoas do Morro da Providência, ouvi de muita gente que também nunca entrou num museu, nem foi à Zona Sul — conta Marcos. — É uma exclusão que acontece mesmo quando a entrada é gratuita, às vezes você não tem nem para a passagem ou não pode parar de trabalhar para ir.
Além dos temas retratados em suas obras, muitas das técnicas usadas em sua produção remontam ao período em que trabalhou em diversas ocupações, desde os 13 anos, como pintor de parede, eletricista, motoboy e serralheiro. Em seu último emprego antes de se dedicar à arte em tempo integral, Marcos Roberto trabalhou numa fábrica de placas de trânsito, em Bauru, onde começou a recolher os suportes de metal.
— A tela é cara, e aí via as placas que eram recolhidas da rua e perguntei se podia ficar com o descarte. Então pintava nelas o que via pela cidade, onde elas estavam penduradas antes, as pessoas em situação de rua, a violência policial — lembra. — Abri um Instagram para mostrar meu trabalho em 2018, e algumas pessoas já quiseram comprar. Nas primeiras duas vendas, consegui quatro meses de salário na fábrica. No segundo mês, fiz cinco meses de salário. Foi quando decidi sair da empresa e investir tudo no meu trabalho artístico.
Obras no MAR
Em 2013, Marcos Roberto foi estudar Artes Visuais na Faculdade Paulista de Artes (FPA), em São Paulo, mas não concluiu o curso porque a casa em que morava, no Centro, foi alagada numa enchente e ele teve de voltar para o interior. Da experiência, o artista levou para sua obra o diálogo com a história da arte, com referências a obras icônicas de Modesto Brocos ( “A redenção de Cam”, de 1895) e Tarsila do Amaral (“Operários”, de 1933), além de séries de nomes da arte contemporânea, como Adriana Varejão e Dalton Paula. Curador da mostra na Movimento e coordenador do programa de residências artísticas do Inclusartiz, Lucas Albuquerque destaca a forma como Marcos Roberto articula arte e educação nas suas obras:
— Além de fazer parte desta nova figuração que trabalha questões sociais, o Marcos Roberto oferece uma possibilidade de emancipação para jovens por meio da educação. Durante a residência ele teve uma troca produtiva com os jovens da região, que, a partir do seu exemplo, também podem pensar na arte como ofício, e não só no que parece estar predeterminado para eles.
A partir do dia 24, o público carioca poderá ver outras cinco obras de Marcos Roberto no Museu de Arte do Rio (MAR), com a inauguração da coletiva “Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros”, montada anteriormente no Instituto Moreira Salles de São Paulo.
— Quando li “Quarto de despejo” fiquei apaixonado pela história dela e fiz a série “Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito” — diz o artista. — Penso sempre nessas relações de passado com o futuro, e essas “páginas em branco” são como uma forma de reescrever nossa história.