Na década de 1980, quando a Aids surgia como uma sentença de morte enigmática para médicos e cientistas e era relacionada de forma preconceituosa à comunidade gay, grupos se articularam para exigir das autoridades a quebra do silêncio em relação à crise causada pelo HIV e a celeridade no desenvolvimento de tratamentos e remédios. Uma destas organizações mais famosas, a Act Up (Aids Coalition to Unleash Power), foi formada em 1987 e tomou as ruas de Nova York em manifestações e atos públicos para conscientizar governo e sociedade sobre a gravidade da epidemia.
Das reuniões do Act Up, surgiu o coletivo Gran Fury, responsável pela produção de peças gráficas e intervenções em espaços públicos. De forma direta, por meio de imagens e slogans, as obras do grupo abordavam temas como a negligência do governo Ronald Reagan em relação aos números de mortos e infectados por HIV e o moralismo com que uma questão de saúde pública foi tratada, numa época de desconhecimento sobre o tema em que a doença chegou a ser chamada de “câncer gay”.
Mesmo encerrando suas atividades como coletivo em 1995, o Gran Fury seguiu como uma referência mundial do chamado “artivismo”, ações que unem manifestações artísticas e ativismo social e político, em prol de alguma causa ou grupo. Desde a última sexta-feira, o coletivo ganhou sua primeira exposição na América Latina, inaugurando no Masp (Museu de Arte de São Paulo) a programação dedicada a “Histórias da Diversidade LGBTQIA+”, tema anual da instituição, que ao longo de 2024 abrigará mostras de nomes como Francis Bacon, Mário de Andrade e Leonilson, além de grande coletiva, prevista para dezembro.
Com a maioria de seu acervo doado à Biblioteca Pública de Nova York, o Gran Fury integra a coleção permanente de instituições como MoMA, New Museum e Whitney Museum, em Nova York. A exposição em São Paulo teve a montagem acompanhada por dois dos antigos integrantes do coletivo, John Lindell e o Loring McAlpin, para quem o início do trabalho do grupo estava ligado diretamente a uma questão de sobrevivência.
— Era autopreservação, sabíamos que estávamos morrendo. Tinha perdido três amigos, todos aos 27 anos. Precisávamos agir, e a Act Up era um lugar aonde ir e tentar fazer algo, e pudemos aproveitar a estrutura que eles tinham — lembra McAlpin. — Na verdade, nunca pensamos se nos considerávamos artistas ou ativistas, não era algo significativo. Ficamos satisfeitos que o mundo da arte tenha nos abraçado e oferecido recursos. Aceitamos esse apoio, foi fundamental para ter acesso a financiamento ou a espaços publicitários. Mas não houve exatamente uma reflexão do tipo: “Isso vai tornar nosso trabalho mais eficiente”. Apenas começamos a fazer algo que era preciso.
Lindell rememora como um dos trabalhos históricos feitos para a Act Up, a instalação “Let the record show…” (1987), que trazia informações sobre a Aids ao mesmo tempo em que denunciava figuras nacionais que usaram a doença para promover suas agendas políticas ou religiosas, colaborou com a fundação do Gran Fury.
— Começamos quando um curador do New Museum veio a uma reunião do Act Up e ofereceu algumas janelas do museu para que nós ou qualquer pessoa as usasse, da forma que achasse mais adequada, para trazer informações sobre a Aids. Assim, formou-se o grupo que fez a instalação, e depois alguns de nós decidimos continuar esse trabalho — recorda Lindell. — Não houve um momento em que decidimos nos reunir como artistas para fazer alguma coisa. Alguém do mundo da arte foi generoso o suficiente para nos dar uma janela e dali começamos a trabalhar.
O título da mostra no Masp, “Gran Fury: arte não é o bastante”, remete a uma peça gráfica feita pelo grupo em 1988 com os dizeres: “Com 42 mil mortos, arte não é o bastante. Engaje-se na ação direta e coletiva para acabar com a crise da Aids”, retratando toda a urgência do período.
— Na época, havia artistas que passavam muito tempo na arrecadação de fundos, outros retratando pessoas com Aids com uma luz triste. O que queríamos dizer é: o que isso muda? Você pode lutar e pedir mudanças — observa Lindell. — Acho que fomos bem-sucedidos ao fazer parte deste processo. Ao mesmo tempo, não conseguiríamos fazer este tipo de arte pensando num espaço de galeria, nunca quisemos ocupar este lugar.
Para o curador André Mesquita, a exposição também demonstra como o domínio da forma foi tão importante quanto o conteúdo das mensagens.
— Eles utilizavam os espaços tradicionais de propaganda ou no caso do “The New York Crimes” (1989), quando imprimiram primeiras páginas falsas do New York Times e trocaram pelas verdadeiras nos pontos de compra, trazendo números sobre a Aids ignorados pelo governo e pela mídia. Isso abriu caminho para muitos coletivos que vieram depois, muita gente aprendeu com essas práticas — destaca Mesquita. — E é interessante abrir as “Histórias da Diversidade” com uma mostra de caráter histórico e documental, mas que joga luz em debates sobre essa comunidade.
A influência citada pelo curador pode ser vista em artes criadas pelo Gran Fury recuperadas em protestos recentes, como na pandemia de Covid-19, no Black Lives Matter e pelo cessar-fogo na Faixa de Gaza. Imagens icônicas, como a mão ensanguentada relacionada a Stephen Joseph, secretário de Saúde de Nova York que em 1988 reduziu pela metade o número estimado de casos de Aids na cidade, volta e meia podem ser vistas na multidão.
— Nunca colocamos qualquer estrutura legal de proteção nos trabalhos, sempre tivemos pouco controle sobre isso. De certa forma é lisonjeiro, e, se é para dar crédito, a mão ensanguentada é um trabalho gráfico dos anos 1930 — localiza McAlpin. — Sempre pegamos algo emprestado de alguém que veio antes de nós. Como é uma imagem muito dramática e gráfica, é algo que pode ser sempre aplicado para várias situações.