Exclusivo para Assinantes
Cultura

Artigo: Antonio Callado, um escritor contra a omissão

Das lutas dos povos indígenas aos movimentos por educação popular, ele investigava problemas fundamentas e que se repetem até hoje
O escritor Antonio Callado em passeata contra a ditadura; ele também critiva a esquerda festiva Foto: Reprodução / Divulgação
O escritor Antonio Callado em passeata contra a ditadura; ele também critiva a esquerda festiva Foto: Reprodução / Divulgação

"O poeta e o romancista não podem fingir que não têm nada a ver com o que está ocorrendo em volta deles. Isso eu acho absolutamente monstruoso. Sobretudo em momentos graves da vida nacional", diz Antonio Callado numa entrevista recuperada pelo documentário "Callado", de Emília Silveira . "A liberdade de criação deve ser total", continua, "mas não vejo incompatibilidade entre escrever a mais hermética das novelas ou poesias e participar ativamente da vida e do sofrimento do país".

Perfil: Documentário joga luz sobre Antonio Callado, escritor que se decepcionava ao tentar compreender o país

A declaração ajuda a entender por que a obra deste que foi um dos grandes autores brasileiros do século 20 conserva sua urgência. Ler Callado hoje é se confrontar com a denúncia de um país autoritário, violento, desigual e racista, onde projetos transformadores estão sob permanente ameaça. Se o enredo soa familiar aos leitores de 2021, não é por Callado ter sido "um escritor à frente de seu tempo". Pelo contrário, era um intelectual enraizado em sua época. O Brasil é que teima em se repetir. "O meio predileto adotado pelos donos do Brasil para não resolverem os problemas fundamentais do país", escreveu, "é deixar que os problemas caiam de velhos".

Representatividade: Leia os prefácios dos escritores indígenas Daniel Muduruku e Márcia Kambebe para nova edição de 'Quarup'

Esse diagnóstico, longe de induzir Callado ao conformismo, lançou-o numa investigação sobre nossos problemas fundamentais. Entre as décadas de 1950 e 1990, esquadrinhou o país – da favela carioca à zona rural de Pernambuco, do Xingu ao Pantanal – para escrever romances, peças de teatro, livros-reportagem e artigos na imprensa, construindo uma obra com a ambição (também típica de sua época) de apreender o Brasil por inteiro. Ambição irrealizável, claro, mas que o permitiu registrar processos históricos que continuam a se desenrolar diante de nossos olhos: as lutas de povos indígenas por suas terras e culturas, os movimentos de base por educação popular e reforma agrária, o heroísmo e a frustração da resistência à ditadura, a brutalidade e a boçalidade dos militares no poder.

Como mostra o filme de Emília Silveira, o engajamento de Callado não se restringiu a seus escritos. Atuou na campanha pela criação do Parque Indígena do Xingu. Acompanhou o nascimento das Ligas Camponesas e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Em 1965, foi um dos "Oito do Glória" presos num protesto contra o general Castelo Branco, junto com Carlos Heitor Cony , Glauber Rocha e outros. Voltou a ser detido por causa de um artigo em que defendia a dissolução do Exército brasileiro, alegando que ele não tinha mais serventia depois da Segunda Guerra. Chegou a ter os direitos políticos e profissionais cassados.

Itamar Vieira Junior: 'O tempo da conciliação já passou'

Por se envolver tanto com o sofrimento do país, Callado tinha repulsa por quem se omitia diante dele. Sem deixar de lado a objetividade de jornalista, e talvez justamente por causa dela, soube enxergar a necessidade de tomar posição contra a barbárie. Afinal, como ele escreveu sobre sua época (e também sobre a nossa): "não ter ideologia não garante a paz e a saúde de ninguém".

Guilherme Freitas é editor-assistente da revista serrote , publicada pelo IMS, professor no curso de Jornalismo da ESPM-Rio e doutorando em Letras na PUC-Rio, com pesquisa sobre os arquivos de Antonio Callado.