Cultura

Artigo: A crítica da guerra tem rosto de mulher

Autoras como Anna Swirszczynska, Virginia Woolf e Susan Sontag, que escreveu ‘a máquina de matar tem um gênero, e ele é masculino’, abordaram conflitos a partir de seus olhares
Um mulher atravessa a rua à frente de uma barricada antitanque em Kiev Foto: GLEB GARANICH / REUTERS
Um mulher atravessa a rua à frente de uma barricada antitanque em Kiev Foto: GLEB GARANICH / REUTERS

Em 1944, a poeta polonesa Anna Swirszczynska participou, como enfermeira, do Levante de Varsóvia, quando, ao longo de 63 dias, a população civil lutou sem sucesso para libertar a capital do controle nazista. O massacre da população foi relatado por Anna Swir (como é conhecida nos países de língua inglesa) em “Eu construía a barricada” (Dybbuk, 2017), em tradução de Piotr Kilanowski. Segundo Kilanowski, “o dever da testemunha, o dever do ser humano, o dever da poeta é lembrar que a ‘guerra não tem rosto de mulher’, como disse Svetlana Alexiévitch”. Essa consciência de dever foi que levou Swir a escrever sobre os horrores que presenciou. Seus relatos são sucintos, talvez porque não coubessem muitas palavras para descrever o que havia testemunhado: “Aqueles que deram a primeira ordem para o combate/ que contem agora nossos cadáveres.//Que vão pelas ruas/ que não existem/ pela cidade/ que contem pelas semanas pelos meses/ que contem até a morte/ nossos cadáveres”, lê-se no poema que encerra seu livro.

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Horror nas trincheiras

A propósito da concisão dos poemas de Swir, parece que não há outra maneira de descrever a barbárie. Em “Diante da dor dos outros” (Companhia da Letras, 2003), em tradução de Rubens Figueiredo, a norte-americana Susan Sontag lembra que, diante dos massacres diários nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, o norte-americano naturalizado inglês Henry James — “o venerável mestre do intrincado ofício de tecer um casulo de palavras em torno da realidade, o mago da verbosidade” — declarou ao The New York Times: “Em meio a tudo isso, é tão difícil fazer uso das palavras como suportar os pensamentos. A guerra esgotou as palavras, elas se enfraqueceram, deterioram-se [...]”.

Anna Swir levou 30 anos para publicar seus poemas. Seus versos são uma forma de combate, de combate à guerra. Nesse sentido, ela parece concordar com o poeta inglês William Blake, que escreveu: “Não desistirei da luta mental”.

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Sem cargo de poder

Outra escritora que se debruçou sobre o tema da guerra, ou melhor, sobre como impedi-la, foi Virginia Woolf. A guerra, para ela, também era assunto de homens; mas será que caberia aos homens apenas trabalhar e guerrear, e às mulheres chorar? Aliás, outro título importante nestes dias sombrios é “As mulheres devem chorar... ou se unir contra a guerra: patriarcado e militarismo” (Autêntica, 2019), de Virginia Woolf, organizado e traduzido por Tomaz Tadeu.

Vale destacar que na época de Woolf e de Swir as mulheres não estavam nos ministérios, não ocupavam cargos na política de seus países: “todas as pessoas produtoras de ideias que estão em posição de fazer com que as ideias sejam eficazes são homens”. Décadas mais tarde e com mais mulheres em posição de poder, Susan Sontag ainda concordaria com Woolf: “a guerra é um jogo de homens — que a máquina de matar tem um gênero, e ele é masculino”.

Hoje, as guerras seguem sendo um “negócio de homens”; basta pensarmos em Ucrânia, Afeganistão, Israel, Palestina, Síria, Nigéria etc.: falo em guerra num sentido amplo: guerra é tudo que dilacera, despedaça, esfrangalha e eviscera. “A guerra calcina. A guerra esquarteja. A guerra devasta”, como afirma Sontag.

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Temos fracassado, mulheres e homens, há séculos; conhecemos a história, vimos imagens que nos repugnaram, testemunhos aterrorizantes. “Nosso fracasso”, diz Sontag, “é de imaginação, de empatia: não conseguimos reter na mente essa realidade”. Nosso fracasso é não enxergar que “a argumentação contra a guerra não depende de informação sobre quem, quando e onde; o caráter arbitrário do morticínio implacável constitui prova suficiente”, destaca Sontag.

Portanto, não importa quem matou quem e por que matou. No ensaio “A Ilíada ou o poema da força”, Simone Weil, que esteve envolvida na Guerra Civil Espanhola e na Segunda Guerra Mundial, afirma que, para respeitar a vida de outrem, é “preciso um esforço de generosidade de arrebentar o coração. Não se pode supor que nenhum dos guerreiros de Homero seja capaz de tal esforço [...]. Mas, quantos homens conhecemos nós, em vários milhares de anos de História, que tenham dado prova de uma generosidade tão divina? É duvidoso que se possam nomear dois ou três. Por falta dessa generosidade o soldado vencedor é como um flagelo da natureza; dominado pela guerra, tanto quanto o escravo, embora de outra maneira, ele se tornou uma coisa e as palavras não têm poder sobre ele, bem como sobre a matéria”.

Ainda hoje, nada parece deter a guerra, nenhum aprendizado, nenhuma imagem, nenhum esforço de generosidade; mesmo assim, podemos nos unir contra ela com diálogo e com ideias ou correremos o risco de acabar sentadas à mesa com tiranos (como se viu no encontro entre Putin e mulheres, grande parte comissárias de bordo, na última semana) ou numa poça de lama sem entender como paramos ali, como Hans Castorp, o volúvel personagem de “A montanha mágica”, de Thomas Mann.

Dirce Waltrick do Amarante é autora de “Minha pequena Irlanda” e “Quando elas esperam”, peças teatrais