Exclusivo para Assinantes
Cultura Segundo Caderno+

Artigo: História como lembrete

Problemas estruturais do Brasil continuam basicamente inalterados. Nosso presente, de fato, anda repleto de passado
Equipes do corpo de bombeiros durante as buscas na Barragem Corrego do Feijão Foto: Ofotográfico / Agência O Globo
Equipes do corpo de bombeiros durante as buscas na Barragem Corrego do Feijão Foto: Ofotográfico / Agência O Globo

A História é uma disciplina com grande capacidade de “lembrar”. Poucos se “lembram”, porém, do quanto ela é capaz de “esquecer”. A História é também a ciência da “mudança no tempo”. Quase ninguém repara, todavia, no seu potencial para “repetir”. E a História Brasileira não tem escapado a essas ambiguidades: se é feita do encadeamento de eventos, também anda repleta de invisibilidades e persistências. Nem sempre é fácil notar, mas uma série de problemas estruturais continuam basicamente inalterados: o racismo estrutural, a violência, a concentração de renda, a intolerância social. Nosso presente, de fato, anda repleto de passado.

O historiador Peter Burke assim definiu a origem da prática dos historiadores: “Houve outrora um funcionário chamado ‘Lembrete’. O título na verdade era um eufemismo para cobrador de dívidas. A tarefa oficial era lembrar às pessoas o que elas gostariam de ter esquecido”. Vale a pena, portanto, deixar um bom “lembrete” acerca do passado brasileiro, cujas estruturas sociais estão vivas. Estou me referindo a um patrimonialismo renitente, herança sempre atualizada na mania que temos de dispor os interesses privados na frente dos públicos; às nossas instituições frágeis, pois estão sempre suscetíveis a toda sorte de afetos políticos; à prática enraizada da corrupção que se arraigou no coração do Estado, deixando de ser apenas um fenômeno frequente para encontrar-se hoje plasmada na representação dos políticos e da política; a uma persistente desigualdade social que gera acessos diversos à terra, à educação, à moradia, à saúde, aos transportes, aos direitos.

É certo que o Brasil é hoje um país menos desigual, a pobreza diminuiu, a educação e a saúde estão melhores. O acesso a bens materiais também cresceu nos últimos 30 anos, como resultado de políticas públicas preocupadas com a redistribuição equânime da riqueza. Ainda assim, nossos indicadores sociais permanecem alarmantes. A despeito de ser o 9º PIB mundial, o Brasil ainda possui 40% da sua população, até 14 anos de idade e sobretudo negra, em situação de pobreza. Admite a existência da polícia mais violenta do mundo, contando com a terceira maior população carcerária do planeta. Os registros de morte guardam cor, geração e região: 70% dos casos envolvem populações jovens e negras das periferias. Feminicídios, estupros e toda sorte de violência de gênero vão se naturalizando, a despeito da Organização Mundial da Saúde ter alertado que o Brasil mantém a quinta maior taxa de assassinatos de mulheres. A escalada da violência física sofrida pelas populações LGBTTQ faz com que a cada 19 horas uma pessoa desse grupo seja morta no país. Tais assimetrias encontram-se refletidas em nosso Congresso Nacional, com a desproporcional presença de mulheres e minorias. O mesmo ocorre com a população indígena, mantida em grande invisibilidade social e representativa e com seu direito à terra frequentemente contestado.

Em que pese o aumento no acesso à educação infantil, com 90% das crianças de 0 a 3 anos frequentando a pré-escola, apenas 30% delas têm acesso a creches. Quase 55% dos alunos que terminam o 3º ano do ensino médio continuam apresentando problemas sérios de leitura. Tais características, reincidentes em nossa história, tendem a se avolumar em contextos de recessão; notadamente quando falta vontade política e sobra jogo para a plateia.

Acidentes contornáveis

Nesses momentos, e com tantos desfalques no seio de nossa República, deixamos de cuidar do primordial: a segurança dos brasileiros, que têm sofrido com a letalidade urbana e rural ou perecido em acidentes que poderiam ter sido contornados. Foi assim com o desastre da barragem da Vale em Brumadinho, quando um mar de lama matou funcionários e toda uma população vizinha sem que a “lembrança” fresca de Mariana ajudasse a alterar a danada da realidade. Foi assim com o incêndio no Ninho do Urubu, centro de treinamento do Flamengo, quando adolescentes que moravam em contêineres foram mortos pelas chamas.

Essas são “crônicas de uma tragédia anunciada” e de outras muitas que virão se não mudarmos a nossa definição o que é bem e direito públicos. A crise iniciada em 2013, que ganha forma definida em 2014 e segue castigando o cotidiano dos brasileiros, minaesperanças e produz ceticismo. Mas vale a pena “lembrar”: a palavra “crise”, de origem grega, traz o significado de “decisão”, no sentido de superar momentos de instabilidade e desequilíbrio do sistema político.

Não há historiador no mundo que seja bom de previsões. Costumamos também ser ruins nos diagnósticos do presente. Mas quem sabe funcionamos bem na base do “lembrete”. Como dizia Millôr Fernandes: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”. Hora de olhar para o passado e imaginar a utopia de um futuro melhor.

Lilia Moritz Schwarcz é historiadora e antropóloga e este ano lançará “Sobre o autoritarismo no Brasil” (Companhia das Letras)