Cultura

Artigo: Não se pode alienar as crianças e colocá-las somente no mundo dos príncipes

Expoentes das novas gerações nos lembram a responsabilidade que temos de criar seres humanos, de verdade, num mundo surreal: é um movimento mundial de conscientização
Cena da peça "O homem que amava caixas", da Cia. Artesanal Foto: Jackeline Nigre / Divulgação
Cena da peça "O homem que amava caixas", da Cia. Artesanal Foto: Jackeline Nigre / Divulgação

Crescer é viver perigosamente. Num mundo conectado, a infância e a adolescência se misturam, entre a doce ilusão e a duríssima realidade: entre o real e o virtual, entre os contos de fadas e os jornais e novelas, sem filtros.

De que maneira podemos apoiar nossos filhos, sobrinhos, netos, primos, conhecidos, amigos para que cresçam “aptos” ao convívio mais humano e aos desafios do mundo contemporâneo?

Não é possível alienar crianças e colocá-las somente no mundo dos príncipes e princesas, já que temas como separação dos pais, racismo, questões de gênero, isolamento, bullying, aquecimento global, violência, entre tantos outros, transbordam em suas vidas.

Alguns países parecem se mobilizar para “capacitar” crianças e adolescentes a uma certa dose de “obediência”, que mais parece produzir mão de obra pouco reflexiva do que criar antídotos para novas barbáries mundiais.

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Malala, Greta Thunberg — expoentes das novas gerações — nos lembram a responsabilidade que temos de criar seres humanos, de verdade, num mundo surreal. É um movimento mundial de conscientização e percepção de que quem vai passar por sufoco maior são nossos netos e bisnetos. Sejamos adultos responsáveis!

Num mundo paralelo e essencial, educadores, pais e artistas de todas as linguagens mobilizam-se para encarar essa responsabilidade e, através da literatura, artes cênicas, visuais, digitais e audiovisuais, proporcionar contatos e plantar reflexão, pensamento crítico e estético. Isso para que os pequenos possam crescer e “se virar” neste mundo doido e doído em que vivemos.

A canadense Suzanne Lebeau estreou, em 2017, “Três irmãzinhas” (“Trois petites soeurs”), que trata do assunto do câncer na infância, numa família funcional normal. O espetáculo lotou salas de diversos países e conseguiu, num feito extraordinário, aliviar a dor de crianças enfermas e de seus pais.

O teatro Bronx, na Bélgica, abordou o tema do terrorismo visto pela ótica das crianças, no espetáculo “Nós e eles” (“Nous et eux”). Tive a sorte de assistir a essa performance um dia antes de um dos atentados na Bélgica.

No Brasil, Leo Cunha escreveu “Um dia, um rio”, abordando, para os novos leitores, a tragédia de Mariana, prenúncio de Brumadinho. Júlio Emilio Braz nos presenteou com “Pretinha, eu?”, sobre o preconceito racial.

Nos palcos, a carioca e premiada Cia. Artesanal representou o Brasil na China e na Alemanha com o espetáculo “O homem que amava caixas”, centrada na dificuldade de afeto entre pais e filhos. Estreará em 11 de abril, no Sesi de São Paulo, “Tatá – o travesseiro”, sobre a separação de um casal.

Fabiano Tadeu Grazioli, doutor em Letras e especializado em literatura infantil, afirma que os temas sensíveis devem estar contidos na cultura oferecida às crianças, em todas as linguagens:

— A arte lida com a subjetividade necessária para o enfrentamento desses temas pela criança. Com a suspensão provisória da realidade, proposta de toda arte, mesmo a realista, a criança alcança um entendimento mais profundo desses temas, o que não acontece quando ela entra em contato com eles no dia a dia.

Miguel Vellinho, diretor da Cia PeQuod e professor adjunto do curso de Licenciatura em Teatro da Unirio, classifica esses assuntos como temas emergenciais. Eles não devem ser tachados de tabus:

— Estão na pauta da vida de hoje, com desdobramentos para as próximas décadas.

O tempo de hoje é instantâneo. Não é possível andar para trás. E então? Vamos nessa?

*Karen Acioly é atriz, dramaturga e diretora teatral