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Cultura

Artigo: Os sertanejos vão aonde o poder está para manter o mundo do mesmo jeito

A despeito de mudanças, como a ascensão das artistas femininas, estilo insiste numa visão retrógrada que os outros donos do sucesso há muito dinamitaram
Presidente Jair Bolsonaro participa de um encontro com sertanejos, no Palácio do Planalto Foto: Jorge William / Agência O Globo
Presidente Jair Bolsonaro participa de um encontro com sertanejos, no Palácio do Planalto Foto: Jorge William / Agência O Globo

RIO - Um pedaço considerável da música brasileira de sucesso foi esta quinta-feira ao Palácio do Planalto para participar de uma cerimônia de homenagem ao presidente Jair Bolsonaro, na qual também foram feitas algumas reivindicações. Sozinhos, Henrique & Juliano, Cristiano (da dupla Zé Neto & Cristiano ), Matheus & Kauan e João Neto & Frederico respondem por dezenas de músicas que ocuparam as posições mais altas das paradas do rádio e do streaming nos últimos dois anos.

ATUALIZAÇÃO : O artigo foi escrito com base na lista de presença divulgada pelo Palácio do Planalto. Vários artistas, como Cristiano, Matheus & Kauan, Bruno & Marrone e Cesar Menoti & Fabiano, no entanto, porteriormente negaram participação no evento, e o próprio Planalto divulgou uma nova lista corrigindo de 56 para 28 o número de artistas presentes. Leia a atualização aqui: Matheus & Kauan e outros sertanejos negam participação em evento com Jair Bolsonaro

"Liberdade provisória" (Henrique e Juliano) e "Bebi minha bicicleta" (Zé Neto & Cristiano) estão no 3º e no 4º lugares do mais recente Top 100 Brasil das rádios levantado pela Crowley Broadcast Analysis . E no Top Brasil do Spotify (a principal plataforma de streaming) desta semana, as mesmas faixas ocupam o 6º e o 9º lugar.

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Essas duplas masculinas são uma boa expressão da primazia do sertanejo (encabeçado hoje, no entanto, por mulheres como Marilia Mendonça e Maiara e Maraisa , que não foram ao encontro com Bolsonaro) na composição de estilos que faz os hits brasileiros de 2020.

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E a presença na cerimônia de demais astros, todos homens, mas da música sertaneja de outras épocas — Bruno e Marrone , Cesar Menotti e Fabiano , Teodoro e Sampaio , Duduca e Dalvan (autores de "Massa falida" , a música citada por Lula ao sair da prisão, em novembro do ano passado ), Gian e Giovani — só evidencia o quanto o estilo ainda está preso a velhos padrões.

Veio a revolução feminina no sertanejo mas as letras das músicas continuam a falar de família, de álcool e de amores ruins (sob o rótulo da "sofrência"), numa perspectiva moralista, heterossexual e branca que os outros donos do sucesso do Brasil (o pop, o funk e os ritmos regionais do Nordeste) há muito cuidaram de dinamitar.

O presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, comemorando seu aniversário na casa da Dinda com os sertanejos Chitãozinho e Leandro Foto: Ricardo Stuckert / Agência O Globo
O presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, comemorando seu aniversário na casa da Dinda com os sertanejos Chitãozinho e Leandro Foto: Ricardo Stuckert / Agência O Globo

Involuntariamente ou não, o bloco majoritariamente sertanejo que foi ao encontro de Bolsonaro (um presidente que costuma revelar suas preferências musicais comparecendo à Feira do Peão de Barretos e à Marcha para Jesus ) ecoa as festas na Casa da Dinda, do presidente Fernando Collor de Mello , animadas por duplas como Chitãozinho & Xororó, Zezé di Camargo & Luciano e Leandro & Leonardo .

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O candidato do PT à Presidência da República, Luís Inácio Lula da Silva, em 2002, acompanhado pela dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano Foto: Carlos Casaes / Agência A Tarde
O candidato do PT à Presidência da República, Luís Inácio Lula da Silva, em 2002, acompanhado pela dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano Foto: Carlos Casaes / Agência A Tarde

Os governos mudam e os sertanejos, a bem da verdade, também mudam — Zezé di Camargo, por exemplo, apoiou o PT durante a presidência de Lula e depois declarou sua simpatia por Bolsonaro. O que parece não mudar é a opção de boa parte desses artistas populares pela conservação dos valores e sinecuras de um país idílico, interiorano e religioso, puxando o freio em tempos de acelerada transformação urbana e comportamental.