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Artigo: o sertão do século XXI se torna mais do que uma região

Cenário está se tornando uma paisagem cultural, um conjunto de imagens, narrativas e valores
Cena da supersérie 'Onde Nascem os fortes', gravada no sertão da Paraíba Foto: Divulgação/TV Globo/Estevam Avellar

RIO — A cada século que passa o sertão vai deixando de ser uma região geográfica. Está se tornando uma paisagem cultural, um conjunto de imagens, narrativas e valores. Esses elementos mantêm uma coerência essencial entre si. E se articulam de um modo flexível, incorporando as novidades que o tempo traz.

Não que o sertão geográfico tenha deixado de existir; é o sertão simbólico que vai se espalhando. Ele cobre tudo: começa cobrindo o Cariri, o agreste, o Pajeú, e as minúcias de clima, vegetação ou solo retrocedem para segundo plano. É um espírito que paira.

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O sertão do século XXI não tem cangaceiros e beatos, mas tem traficantes de drogas e seitas evangélicas. A contaminação da cultura urbana se dá via TV e internet. Na beira das rodovias, as barraquinhas vendem banana, cajá, DVDs de filmes pornô e de lutas marciais.

Ariano Suassuna dizia que o mundo do sertanejo estava mais próximo do mundo dos samurais japoneses do que dos caubóis norte-americanos. São valores que envolvem austeridade, lealdade, espírito coletivo, autoridade, obediência, amor próprio, serenidade na fartura, estoicismo na fome. O sertanejo tradicional repele uma cultura urbana que lhe chega como um culto ao consumismo, à busca do prazer, à fugacidade das relações, à quebra da palavra dada, à ostentação, ao egoísmo.

Por outro lado, a cultura urbana ajuda a quebrar a rígida verticalização entre as classes, entre os adultos e os jovens, entre o homem e a mulher, e expande os espaços de poder de quem nunca teve direito a voz. O sertão é sólido, mas se mexe.

Cordel do Fogo Encantado. Nascido no sertão pernambucano, na cidade de Arcoverde, e formado por jovens sertanejos há duas décadas, o Cordel do Fogo Encantado encarna em sua música a ideia do sertão vivo, dinâmico, mutante, em oposição a um sertão arcaico e museológico. É o que a banda mostra em seu recém-lançado disco “Viagem ao coração do sol”: — Optamos por uma música e uma poesia inventiva, em criar ritmos, e não reproduzir ritmos tradicionais — explica o vocalista Lirinha. Foto: Divulgação/Tiago Calazans
Cabaré do Xote Moderno. O novo projeto de Letícia Persiles, da banda Manacá, está em fase de preparação (há uma campanha de financiamento coletivo aberta). O espetáculo imagina a atmosfera de uma taverna no sertão do Cariri, e une Kurt Weill, Chiquinha Gonzaga, Jacob do Bandolim e Marinês. — O Cabaré tem a intenção de ser um coletivo de músicos, ainda não temos nenhum projeto de disco em mente, mas sim de encontros e ensaios abertos — conta Letícia. Foto: Divulgação
‘Onde nascem os fortes’. Da trilha sonora à presença de personagens característicos desse novo sertão, a supersérie da TV Globo busca inspiração no imaginário desenhado antes por Guimarães Rosa e pelo Cinema Novo, entre outras referências. — Há a terra árida e a opressão masculina, mas surgem mulheres como Maria (Alice Wegmann), Cássia (Patricia Pillar), Rosinete (Debora Bloch) e Joana (Maeve Jekings), que põem em xeque esse equilíbrio de forças — diz George Moura, um dos autores de “Onde nascem os fortes". Foto: Divulgação/Estevam Avellar
'Boi neon'. O diretor Gabriel Mascaro afirma que era fundamental que a ação do filme, lançado em 2015, se desse no espaço do sertão de hoje: — Me pareceu importante que o “Boi neon” se passasse em meio a um cenário contemporâneo de uma estranha prosperidade econômica regendo novos signos, desenhando novas relações humanas, afetos e desejos. É um filme sobre a transformação da paisagem humana, ainda que com todas as ambiguidades dessa transformação “tropeçada”. Foto: Divulgação
‘Suassuna — O auto do reino do sol’. Idealizado e produzido pela Cia. Barca dos Corações Partidos e pela produtora Andrea Alves, o musical (em cartaz no Teatro Frei Caneca, em São Paulo) visita o universo de Suassuna cruzando a alegria das cores do circo e do maracatu com a violência e o drama sertanejo. — Todo o contexto político da obra, de disputa de poder, de desprezo pelo povo, é muito atual. E, em termos de linguagem, os figurinos e a música puxam para o hoje de forma mais evidente — explica Andrea. Foto: Divulgação/Marcelo Rodolfo
‘Grande sertão: Veredas’. A construção do sertão que se vê na peça de Bia Lessa (atualmente em viagem por teatros do Nordeste) se dá pela sugestão, explica a diretora: — Nossa referência foi a obra do Guimarães: “o sertão está em toda parte”, “o sertão está dentro da gente”. Não revelar um sertão tal como é, mas de evocar um sertão que pudesse ser complementado por cada um dos espectadores. Escolhemos criar um espaço de confinamento onde o sertão pudesse ser apenas sugerido, pelos gestos e pela voz dos atores. Foto: Divulgação/Roberto Pontes

Essa mescla de valores urbanos/modernos e rurais/tradicionais fornece a energia dramática a uma literatura de inspiração sertaneja, desde Suassuna (“Romance d’A Pedra do Reino”) a W. J. Solha (“Relato de Prócula”), de Osman Lins (“Retábulo de Santa Joana Carolina”) a Ronaldo Correia de Brito (“Faca”), e muitos outros autores. E explora a contradição crescente e explosiva no interior de um sertão que se expande como símbolo idealizado enquanto recebe a contaminação imaterial do mundo que o cerca.

A música popular, talvez o mais fervilhante desses canais de comunicação, mostra que desde Luiz Gonzaga a música sertaneja dialoga em pé de igualdade com a música urbana dos grandes centros. Enquanto o rótulo genérico “sertanejo” é sequestrado pela canção romântica da classe média das cidades, o sertão verdadeiro emprega samplers para injetar energia no coco de embolada, ou acopla guitarra com rabeca para falar do futuro do planeta.

* Escritor, poeta, compositor e autor do texto do musical “Suassuna — O auto do Reino do Sol”