Exclusivo para Assinantes
Cultura

Ator, autor e diretor, Rodrigo França lota teatros com espetáculos repletos de negros no palco e nos bastidores

Farto de ser o único em cena, ele passou a escrever os próprias peças para se ver representado e agora vira ícone de um teatro mais diverso
Rodrigo França Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo
Rodrigo França Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo

Há dez anos, o ator, diretor e roteirista Rodrigo França cansou de ser o único negro do rolê. E começou a questionar a falta de pares tanto no palco quanto nos bastidores das peças em que atuava. Também não se via representado nos enredos. Nem na universidade, nos restaurantes... De tanto reclamar, Rodrigo virou “o chato”, como ele diz. Então, decidiu parar de falar e agir. Mergulhou na pesquisa do teatro negro de Abdias do Nascimento e Solano Trindade, entre outras referências, e passou a criar suas próprias narrativas.

— Entendi que só teria o que desejava se fizesse meus projetos, se fosse o telefone que toca para os meus pares. Como pode haver essa invisibilidade toda se somos 54% da população brasileira? — pergunta ele.

Hoje, Rodrigo é autor de “ O pequeno príncipe preto ”, visto por mais de 50 mil pessoas em um ano e meio. Também é ator de “ Contos negreiros do Brasil ”, que soma 60 mil espectadores em três anos. E dirige duas peças no momento: “Oboró, masculinidades negras”, de Adalberto Neto, em cartaz no Teatro Sesi, e “O amor como revolução”, que estreia amanhã, no Teatro Carlos Gomes.

As salas lotadas provam que não era só Rodrigo que sentia falta de se ver. E a reação emocionada das plateias — em sua maioria, negras — mostra que ele tem acertado. Não apenas ao colocar negros como protagonistas das histórias, mas também ao fugir de estereótipos e narrativas previsíveis.

— Trabalhei com iluminadores renomados que nem sabiam iluminar um ator negro em cena — conta ele.

Rodrigo também traz a reboque a realidade que só conhece quem sofre na pele. Caso do protagonista de “O pequeno príncipe preto”, desencorajado, pela própria professora, de sonhar em ser príncipe por ser negro.

— O espectador se vê ali. Mas a classe artística ainda é preconceituosa e classifica como teatro panfletário, raivoso. Por que teatro branco é encarado como político, subversivo, progressista e, quando a gente vai falar sobre nossas dores, é revoltado? — questiona. — Professores ainda trabalham com o lápis cor da pele como universal. Precisamos dizer “basta”.

Não à toa, um de seus próximos projetos é a versão infantil de “Contos negreiros”. Outro é uma releitura de “Macbeth”, desta vez, negro. E também estão a caminho espetáculos sobre o ator Jorge Lafond e a funkeira transexual Mulher Pepita.

— Precisamos dizer às crianças negras que elas são lindas e capazes. Instrumentalizá-las e dar repertório a partir do que passam na escola, no clube e no parque para subverterem qualquer narrativa que diga o contrário.

Aos 41 anos, o ex-BBB que sofreu ataques racistas nas redes sociais enquanto disputava o “Big Brother”, em abril (e luta para identificar e processar os responsáveis) já ganhou um Prêmio Shell e tornou-se um ícone para o movimento negro. Mas hoje extrapola nichos, como explica a colunista do GLOBO Flávia Oliveira, que o acompanha de perto:

— É um artista brilhante para a produção artística brasileira em geral, tem imensa sensibilidade e é um grande empreendedor.

O escritor Julio Ludemir, um dos criadores da Flup, que lançou a antologia “Dramaturgia negra” com texto de Rodrigo, também pondera:

— Ainda que trabalhe no campo da representatividade e violência contra o povo preto, ele fala de modo que emociona quem não é negro. É uma produção com sentido universal, algo que também se nega ao povo negro.

Além de levar público ao teatro, Rodrigo tem fortalecido um mercado de atores, produtores, autores, iluminadores negros, que compõem 100% da força criativa e técnica de seus projetos. Por isso, é definido por Lázaro Ramos, coprodutor de “O amor como revolução”, como um “grande articulador teatral, que oferece energia agregadora e faz todo mundo querer embarcar nos projetos”.

—Ninguém reclama quando só tem branco no palco — diz Rodrigo.

E sabe aquele discurso de alguns produtores de que é difícil achar atores negros para espetáculos brasileiros? Pura construção social, ele diz:

— Existe um olhar viciado para os mesmos atores. O mercado de trabalho que a gente está estabelecendo contradiz isso.

O próprio autor e diretor foge do clichê. Filho de pai militar e mãe funcionária pública, nasceu em Botafogo, cresceu na Penha, estudou em escolas particulares e sempre teve, em casa, uma educação consciente sobre a questão racial. Cresceu ouvindo dos pais que “criança preta não pode correr porque vira alvo” e que “meritocracia é um conceito hipócrita” no Brasil.

Desde pequeno, Rodrigo estudou teatro e se profissionalizou na companhia dos atores Antonio Pedro e Anselmo Vasconcelos, na Uerj. Paralelamente, formou-se em ciências sociais, filosofia e normal superior. Durante 12 anos, deu aulas de sociologia criminal, sociologia jurídica e ética, e direitos humanos para policiais militares no Rio de Janeiro.

Em casa também compartilhou o que aprendeu. Ao lado dos irmãos, ensinou a avó a ler e escrever. Detalhe: por 35 anos ela trabalhou numa escola da Zona Sul carioca e permanecia analfabeta.

— Ela só queria ler e escrever. Uns podem sonhar, outros não.

Para ver Rodrigo França

“Antes solo que mal acompanhado”. Codirigida por Rodrigo França, a peça traz dois solos sobre o autoconhecimento: no primeiro, temas atuais são vistos sob a ótica de um morador de rua; no segundo, uma personagem busca compreender o tempo e as relações humanas. Duração: 80 minutos. Teatro Poeirinha, em Botafogo (2537-8053). Ter. e qua., às 20h. R$ 60. Até 18/12.

“Turmalina 18 – 50”. Sob a supervisão artística de Rodrigo, o espetáculo resgata a memória de João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, morto há 50 anos. Há sessões em vários dias e locais , incluindo São João de Meriti, onde ele viveu, e no Centro do Rio. Duração: 80 minutos. Hoje, no Sesc São João de Meriti (4020-2101), às 19h. R$ 10. Amanhã, na Praça da Matriz, no Centro de São João de Meriti, às 16h. Grátis. Sex., no Paço Imperial (2215-2622), às 18h30. Grátis.

“Oboró - Masculinidades negras”. Dirigido por Rodrigo, o texto de Adalberto Neto retrata a vida de nove homens negros, com suas dificuldades, lutas e alegrias. Em Yorubá, oboró designa orixás do sexo masculino. Duração: 90 minutos. Teatro Firjan Sesi, no Centro (2563-4163). Qui. a sáb., às 19h. Dom., às 18h. R$ 40. Até 1 5/12