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Cultura

Biografia apresenta Samuel Wainer como 'Macunaíma' que se manteve fiel a suas convicções políticas

Em novo livro, a jornalista Karla Monteiro desmente afirmações publicadas nas memórias do dono do 'Última Hora', prova que ele era estrangeiro e revela que sua primeira mulher o traiu com Rubem Braga
O jornalista Samuel Wainer, fundador do "Última Hora", lendo O GLOBO em 1953 Foto: José Santos / Agência O GLOBO
O jornalista Samuel Wainer, fundador do "Última Hora", lendo O GLOBO em 1953 Foto: José Santos / Agência O GLOBO

SÃO PAULO — “Eu voltarei, mas não como líder de partidos e sim como líder de massas”. Em “Minha razão de viver”, suas memórias publicadas em 1987, o jornalista Samuel Wainer (1912-1980), dono do jornal “Última Hora” entre 1951 e 1971, botou essa frase na boca de Getúlio Vargas (1882-1954), que ele entrevistara no carnaval de 1949, na fazenda em que o gaúcho se exilara, em São Borja, após deixar a Presidência, em 1945. Uma rápida pesquisa no Google atesta que a declaração de Vargas, publicada no “Diário da Noite”, onde o jornalista trabalhava, foi reproduzida exaustivamente em livros e artigos acadêmicos. Na recém-lançada biografia “Samuel Wainer: o homem que estava lá”, a jornalista Karla Monteiro prova que a promessa que Vargas, à época senador da República, era bem menos eloquente: “Pode publicar que voltarei para o Rio em abril ou no máximo em maio”.

O “Diário da Noite”, que integrava o grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand, estampou a frase junto com outra declaração do gaúcho: “Eu não sou propriamente um líder político. Sou, isto sim, um líder de massas”. Ao editar a fala de Vargas, Wainer arrancou dele uma promessa nunca feita, mas cumprida com o retorno do gaúcho à presidência em 1951. Não era à toa que Vargas o chamava de Profeta.

Essa não é a única correção que a nova biografia faz às memórias de Wainer, best-seller que vendeu mais de 200 mil exemplares e, até hoje, é leitura obrigatória nas faculdades de jornalismo. A entrevista com Vargas, o grande furo de Wainer, não aconteceu por acaso, como ele gostava de contar. Ele dizia que estava apurando uma reportagem sobre trigo e, ao sobrevoar a propriedade do ex-presidente, resolveu dar uma passada e saiu de lá com uma entrevista bombástica.

Ao consultar a correspondência de Vargas com sua filha, Alzira, Karla descobriu que ela combinara a visita do jornalista para arrancar do gaúcho declarações que influenciassem as eleições do ano seguinte (que ele próprio venceria). A única surpresa foi o repórter ter chegado antes da carta em que Alzira explicava o plano ao pai.

Limites éticos forçados

Karla também crava que o dono do “Última Hora” não nasceu no Brasil, boato que provocou gritaria à época, porque estrangeiros não podiam ser donos de jornais , e ainda dá detalhes do primeiro casamento do Wainer, cuja terceira mulher foi a jornalista Danuza Leão .

Criado com ajuda do governo Vargas, que lhe garantiu empréstimos camaradas do Banco do Brasil, o “Última Hora” foi o único grande jornal a apoiar o gaúcho e seu herdeiro político, João Goulart , presidente entre 1961 e 1964, e a protestar contra o golpe que o derrubou. Numa época de jornais sisudos, Wainer encheu o “Última Hora” de fotografias bonitas e obrigou a concorrência, mais interessada no noticiário internacional, a falar dos jogos do fim de semana.

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Foi acusado de vendido e oportunista. Para Carlos Lacerda (1914-1977), dono da “Tribuna da Imprensa”, era um “aventureiro”. Karla prefere chamá-lo de “Macunaíma” . Quem primeiro sugeriu compará-lo ao “herói sem nenhum caráter” de Mário de Andrade (1893-1945) foi o jornalista Francisco de Assis Barbosa (1914-1991), que bateu ponto no “Última Hora” .

— O Samuel obrigou uma imprensa adormecida a se mexer. Ele questionava o mito da neutralidade jornalística e nos ajuda a entender como os discursos da imprensa formaram ou deformaram nossa democracia — diz Karla, que é coautora do livro “Sob pressão” (Globo Livros), que deu origem à série televisiva . — Mas ele não era nenhum santo. Deu canelada e golpe abaixo da cintura. Sabia que se não forçasse os limites éticos ia continuar vendendo tapete no Bom Retiro.

A jornalista Karla Monteiro, autor de "Samuel Wainer: o homem que estava lá" Foto: Márcia Charzinon / Divulgação
A jornalista Karla Monteiro, autor de "Samuel Wainer: o homem que estava lá" Foto: Márcia Charzinon / Divulgação

Quando Wainer foi desmascarado como estrangeiro, os judeus do Bom Retiro, reduto imigrante no centro de São Paulo, o defenderam: juraram que o filho de dona Dora e seu Jaime nascera ali, em 1912. A verdade é que os Wainer vieram da Bessarábia (atual Moldávia), e o pequeno Samuel aportou no Brasil aos 9 anos. Karla descobriu um depoimento no qual uma irmã de Wainer, Bertha, afirma que a família desembarcara no Brasil um ano após a chegada do irmão mais velho, Artur. No Arquivo Nacional,encontrou o nome do primogênito dos Wainer na lista de passageiros de um navio que partira da Europa em 1920.

Na juventude, Wainer rumou para a Praça Onze, no Rio, onde se enturmou com a esquerda judaica. Aproximou-se do trabalhismo, ideologia que também inspirou David Ben-Guiron (1886-1973), primeiro chefe de governo de Israel. O livro lembra que Wainer já era de esquerda muito antes de Vargas tomar o lado dos trabalhadores, e precisou até se exilar no final do Estado Novo, ditadura imposta pelo gaúcho em entre 1937 e 1945. As crenças políticas do jornalista acusado de se vender ao governo (Wainer foi alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito) eram mais estáveis do que as do presidente que ele defendia, mostra Karla, que descreve a trajetória do “Macunaíma hebreu” como “ideologicamente retilínea”.

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Em “Minha razão de viver”, Wainer dedica apenas um parágrafo à sua primeira mulher, a jornalista Bluma Chafir: “nossa incompatibilidade de gênios era total”. Bluma era amicíssima de Clarice Lispector e, dizem, ainda mais bonita do que ela. Traiu o marido com o escritor Rubem Braga, à época colaborador de Wainer na revista “Diretrizes”, engravidou dele e abortou.

— Os diários e cartas da Bluma me permitiram reconstituir o começo da vida do Samuel, a formação primeira revista dele, a “Diretrizes”, o exílio durante o Estado Novo. Ela era uma mulher avant-garde, ligada à intelectualidade, e que ajudou a formar o Samuel— diz Karla, que trabalha numa biografia do político gaúcho Leonel Brizola (1922-2004). — Biografia de gente careta é muito chata. São os malucos que rendem livros bons.

"Samuel Wainer: o homem que estava lá"

Autora: Karla Monteiro

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 584

Preço: R$ 89,90

Capa de "Samuel Wainer: o homem que estava lá", biografia assinada pela jornalista Karla Monteiro e publicada pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Samuel Wainer: o homem que estava lá", biografia assinada pela jornalista Karla Monteiro e publicada pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgação