Cultura

Biografia escrita por Benjamin Moser entrelaça trajetória e trabalho de Susan Sontag

Intelectual americana, que analisou a cultura do século XX de maneira original e provocadora, é tema de 'Sontag - Vida e obra'
Susan Sontag em foto de 1975 Foto: Peter Hujar / Metropolitan Museum of Art
Susan Sontag em foto de 1975 Foto: Peter Hujar / Metropolitan Museum of Art

Susan Sontag foi uma intelectual atravessada por todas as grandes questões do século XX, que surgem no seu trabalho de modo único. Essa reflexão norteia a biografia “Sontag – vida e obra” (Companhia das Letras), do americano Benjamin Moser, que chega às livrarias nesta sexta.

Nascida em Nova York em janeiro de 1933 “sob o signo de Saturno” – título de um dos ensaios que dedicou ao seu filósofo favorito, Walter Benjamin – e morta por um câncer em 2004, Susan Sontag viveu seus 71 anos intensamente.

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Por ela passaram a Segunda Guerra, o holocausto e seus horrores. As guerras do Vietnã e da Bósnia. A psicanálise de Freud, sobre quem escreveu. O marxismo e a queda do Muro de Berlim. A fotografia e o cinema como novas formas de percepção do mundo. A arte moderna e a pop art, da qual acabou tornando-se também objeto, nas obras de Andy Warhol. A segunda onda feminista. As transformações na sexualidade, que lhe permitiram transitar entre a hetero e a homossexualide. As grandes enfermidades – a tuberculose que matou seu pai, o câncer, que se abateu sobre ela duas vezes, e a Aids, que lhe tirou amigos e a fez retomar o tema da doença como metáfora.

E, claro: a estetização da vida e a função pública de uma intelectual cuja obra e biografia se entrelaçam.

Essa mulher que se transformou numa personagem para sobreviver ao que seu biógrafo descreve como uma conflituosa relação com a mãe fez da sua vida uma combinação de grandes e pequenos gestos transgressores.

Quebrando padrões

Exemplo: Susan pôs fim na divisão sexual dos jantares de Manhattan, onde, depois de servida a refeição, a etiqueta promovia uma separação de homens e mulheres em dois salões para que as conversas pudessem seguir áreas de interesse específicas. Certa noite, Susan Sontag simplesmente não trocou de sala.

Parece pouco, mas são detalhes como esse que recheiam as quase 700 páginas do livro de Moser. De maneira semelhante ao que fez na biografia de Clarice Lispector, há uma engenhosa combinação entre os diários de Susan, mantidos por toda a vida (e nem sempre coerentes com os fatos) e o que ela deixou de imortal: sua obra, original e provocadora, engajada e crítica.

É verdade que a primeira parte do livro carrega nas tintas psicologizantes, tecendo relações causais entre a infância e a vida adulta de Susan, como se fosse possível amarrar todas as pontas soltas.

A escritora americana Susan Sontag Foto: Rohan Lima / Rohan Lima
A escritora americana Susan Sontag Foto: Rohan Lima / Rohan Lima

De fato, a relação dela com a mãe, Mildred, é cheia de sofrimentos, ausências e carências – principalmente até os 19 anos, quando Susan deu à luz a seu único filho, David. No período em Sontag cresceu, a maternidade em um lar judaico pressupunha certa dedicação — que a mãe de Susan Sontag ignorou. Moser, porém, atribui aesse desamparo original um conjunto de comportamentos que definiriam toda a trajetória de Susan, como se inúmeras outras experiências nunca viessem a se somar — para o bem e para o mal.

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Depois de algumas tentativas fracassadas de se encaixar em padrões heteronormativos, incluindo um casamento, Susan Sontag não apenas tirou sua homossexualidade do armário como foi uma das artífices da ideia de que o universo gay era o caminho da transgressão estética e da superioridade da sensibilidade.

Moser encontra essa hipótese em “Notas sobre o camp ”, o ensaio que alçou Susan a um novo patamar da intelectualidade nova-iorquina. Ao enxergar no camp “uma maneira de ver o mundo como um fenômeno estético”, Susan não só abordou o fim da “aura” da obra de arte (na esteira de Benjamin) mas também definiu a estética do século XX.

Influência de Benjamin

O alemão Walter Benjamin (1892-1940) foi o filósofo com quem Susan mais se identificou. Suas reflexões em “Sobre a fotografia”, atribuídas por Moser a uma vivência infantil de vislumbrar a última imagem da mãe e da avó juntas, são inseparáveis das ideias do pensador em textos como “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” ou “Pequena História da Fotografia”.

Refletir sobre como a fotografia mudou nosso modo de perceber o mundo resultou também uma longa e intensa relação amorosa com a grande fotógrafa Annie Leibovitz – outra indicação de que Moser acerta ao enlaçar vida e obra.

Capa de biografia "Sontag — Vida e obra", de Benjamin Moser Foto: Divulgação
Capa de biografia "Sontag — Vida e obra", de Benjamin Moser Foto: Divulgação

Na forma ensaística, no engajamento e até na errância, a influência intelectual de Benjamin é explícita em Susan, como se pode ler em “Sob o signo de Saturno”: “Benjamin se projetou em todos os seus principais temas, e neles projetava seu temperamento, que determina sua escolha.”

É como se ela estivesse descrevendo a si mesma: funciona como um guia perfeito para interpretar Susan Sontag, com e contra ela.

*Carla Rodrigues é professora de Filosofia da UFRJ e pesquisadora da Faperj.

“Sontag: vida e obra”

Autor: Benjamin Moser. Editora: Companhia das Letras. Tradução: José Geraldo Couto Páginas: 704 Preço: R$ 109,90