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Cultura

'Bishop não era uma escritora politizada', diz tradutor da poeta americana

Para Paulo Henriques Britto, a americana emprestou a ideologia de sua companheira, aliada de Carlos Lacerda
A poeta americana Elizabeth Bishop, homenageada da próxima Festa Literária Internacional de Paraty Foto: Divulgação
A poeta americana Elizabeth Bishop, homenageada da próxima Festa Literária Internacional de Paraty Foto: Divulgação

SÃO PAULO – A poeta americana Elizabeth Bishop pouco conhecia a política brasileira e suas palavras de apoio ao golpe militar de 1964 “refletem os juízos de valor” de sua companheira, a arquiteta Lota de Macedo Soares, esta, sim, “uma pessoa comprometida com a ditadura”. Quem argumenta é o poeta e tradutor carioca Paulo Herinques Britto, que verteu para o português a poesia, a prosa e a cartas de Bishop, anunciada nesta segunda-feira (25) como a autora homenageada da próxima Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) .

Histórico : Relembre todos os escritores homenageados desde 2003

Em cartas enviadas a amigos americanos, como o poeta Robert Lowell e a crítica literária Anne Stevenson, Bishop defendeu o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart. A Stevenson, ela afirmou “Nunca na minha vida, antes de vir para cá, sonhei por um minuto que algum dia eu gostaria de ver um exército tomar o poder”. A Lowell, ela chamou o golpe de uma “revolução rápida e bonita” e defendeu a suspensão das liberdades democráticas: “tinha que ser feito, por mais sinistro que pareça”. A declarações pró-ditadura de Bishop causaram mal-estar e escritores foram às redes sociais protestar contra a decisão da Flip de homenageá-la .

– Bishop não era, de modo algum, uma escritora politizada. A companheira dela, Lota de Macedo Soares, é que era muito próxima dos líderes civis do golpe de 1964, como Carlos Lacerda (jornalista e governador do estado da Guanabara entre 1961 e 1965) – afirma Britto. – Essas declarações têm menos a ver com uma defesa da ditadura e mais uma adesão à versão da turma de Lota e Lacerda. Bishop teve algumas rusgas com amigos americanos que estranharam essas declarações, porque, nos Estados Unidos, ela era progressista, apoiava o Partido Democrata e o fim da segregação racial.

Amiga de Carlos Lacerda

Filha da aristocracia fluminense – o pai dela, José Eduardo Macedo Soares, era um jornalista famoso –, Lota era amiga de Lacerda, um antigetulista feroz, que a convidou para projetar o Parque do Flamengo. Quando Lacerda passou a fazer oposição à ditadura militar, em 1966, ele e Lota romperam. Em uma carta a Lowell, Bishop criticou a Frente Ampla pró-democracia criada por Lacerda e dois de seus antigos inimigos políticos, Jango e Juscelino Kubistchek: “Carlos traiu todo mundo de forma horrível – depois de todos os anos de luta contra a gangue do velho Vargas e a corrupção, de repente, por razões políticas, ele se passou para o lado deles (e dos comunistas) outra vez”.

Britto lembra que a ideologia emprestada de Lota não impediu Bishop de se encantar com Brasília, acusada pela UDN (União Democrática Nacional), partido que fez oposição a Vargas, JK e Jango, de ser construída graças à corrupção.

— Na reportagem “Uma nova capital, Aldous Huxley e alguns índios”, que acabou não sendo publicada pela “The New Yorker”, dá para perceber que ela tinha que ser contra Brasília por causa da corrupção, mas não conseguia esconder seu fascínio por aquela cidade construída a partir do nada – afirma Paulo Henriques Britto. – Nesse texto, vemos uma certa tensão: até que ponto Bishop se sentia obrigada a defender posições políticas próximas da de Lota?

Desencanto em Ouro Preto

Após a morte de Lota, em 1967, Bishop se mudou para Ouro Preto, com sua namorada americana Alice Methfessel. Nas cartas escritas por lá, diz Britto, é possível perceber, nas entrelinhas, o descontentamento da poeta com o clima dos anos de chumbo.

— Embora ela não faça nenhuma crítica direta, dá para perceber que ela está apavorada com o clima daqueles anos. Ela chegou a ser apresentada ao pessoal do Living Theather (companhia teatral nova-iorquina) , que foi preso e expulso do Brasil pela ditadura.

A escolha de Bishop, a primeira estrangeira a ser homenageada pela Flip, também foi criticada devido a comentários considerados negativos e preconceituosos sobre a cultura brasileira. Em carta a Lowell, ela escreveu: “Manuel Bandeira é delicado e musical e tudo o mais - nada parece sólido ou realmente 'criado' - é tudo pessoal e tendendo para o frívolo. Um bom poema de Dylan Thomas vale mais do que toda a poesia sul-americana que já vi, com a exceção, possivelmente, de Pablo Neruda”.

Segundo Britto, a poeta americana, de fato, se interessava mais pela natureza e pelo pitoresco da cultura popular brasileira do que pela alta literatura produzida aqui.

— Uma crítica que poderia ser feita com certa justiça é que Bishop nunca teve interesse pelo Brasil em si, pela cultura brasileira. A relação dela com o Brasil foi acidental. Ela viveu aqui por causa de Lota. Nunca aprendeu português direito, embora tenha feito traduções não muito boas de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Mello Neto e uma tradução brilhante de um soneto de Vinicius de Moraes – diz Britto. – Ela leu Clarice Lispector e Machado de Assis, mas o Brasil para ela era a natureza, o primitivo, a cultura popular.

Bishop gostava de Carnaval e muitos de seus poemas aludem direta ou indiretamente do ao Brasil.

Ao comentar as críticas à homenagem a Bishop por conta de suas declarações em defesa ao golpe de 1964, Britto menciona uma carta do inglês George Orwell, autor de “1984”, na qual ele discute o julgamento do poeta americano Ezra Pound (1885-1972), acusado de traição por apoiar o nazifascismo:

— Pound ganhou um prêmio literário logo depois de ser julgado por traição e perguntaram para o Orwell o que ele achava. Ele deu uma resposta eminentemente sensata: uma coisa era premiá-lo por um livro bom, outra coisa era enforcá-lo ou fuzilá-lo por ser um traidor. As duas coisas não são incompatíveis.