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Cultura

Bruna Linzmeyer: 'Quando me descobri sapatão, foi uma farra dentro de mim'

Na série 'Entrevista na janela', feita com drone, atriz fala de 'Pantanal' e de ter se tornado uma voz importante no empoderamento LGBTQIAP+: ‘O amor entre mulheres é transformador’
Bruna Linzmeyer Foto: Divulgação / Jorge Bispo
Bruna Linzmeyer Foto: Divulgação / Jorge Bispo

Bruna Liznmeyer sofreu lesbofobia durante quatro anos num consultório de psicanálise. Não foi tão explícito como aconteceu com uma de suas amigas, que ouviu da terapeuta: “Você não precisa de um caminhão, mas de um caminhoneiro”. Só que escutar da analista frases como “você não é lésbica” e “isso é uma fase” foi, ao poucos, minando a autoconfiança da atriz de 28 anos.

— Quando vi, eu não dançava mais, não bebia, não amava. Parei até de escrever. Ela me fez duvidar de mim, da minha escolha, do meu desejo — conta Bruna, em entrevista por drone na série do GLOBO, “Entrevista na janela” (veja abaixo).

A atriz Bruna Lizmeyer é a convidada da série
A atriz Bruna Lizmeyer é a convidada da série "Entrevista na Janela". Na conversa com a repórter Maria Fortuna, a atriz conta como é ser sapatão e como lida com sua sexualidade: "A possibilidade do amor entre duas mulheres é revolucionário", diz. Bruna vai além. "Eu gosto de ser quem eu sou quando estou com com mulher sapatão". A atriz também fala sobre os incêndios do Pantanal e da personagem.

Falar sobre essa experiência tem sido uma forma de ajudar outras mulheres. Bruna, que atualmente namora a DJ e artista visual Marta Supernova, se tornou uma voz importante no empoderamento LGBTQIAP+. Em suas redes, acolhe, encoraja e, sobretudo, colabora na construção do que chama de “cultura sapatão”. No Instagram, criou o programete “Brindr”, inspirado no app de pegação “Grindr”, para pessoas se conhecerem.

Nessa entrevista, a atriz, que está rodando o remake de “Pantanal”, integra o elenco dos filmes inéditos “Medusa” e “Uma paciência selvagem me trouxe até aqui”, afirma que “ser sapatão é uma identidade cultural, um pertencimento emocional, um lugar no mundo”.

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Como será a sua "Madeleine", papel que foi de Ingra Liberato na primeira versão de Pantanal? Você já disse que a personagem terá uma "voz amargurada" e está te dando trabalho....

Faço a primeira fase da novela, são 20 capítulos. Há passagens de tempo, e Madeleine tem uma curva até chegar nessa voz amargurada. É o tipo de personagem que olho e falo: "Que bosta de vida, que merda que ela foi parar aí com as próprias atitudes". Ela é capturada pela estrutura patriarcal e de classe, mas, ao mesmo tempo, está sempre buscando algo. Só que não encontra e vai se decepcionando. Tem uma energia alta, uma impetuosidade. Começa com muitas vontades e vai se vendo em emboscadas. Não está disposta a ceder e vai endurecendo. É alguém com o peito duro, que não se aconchega no abraço.

O remake da novela chega após sucessivas queimadas e incêndios no Pantanal. Acredita que a novela pode ajudar a chamar a atenção para importância da preservação desse bioma único no mundo?

Espero. Quando a gente fala do Pantanal, o fogo é o que mais chama a atenção, mas precisamos falar também das nascentes que estão secando, do desmatamento em volta delas, do veneno nessas águas, das plantações de soja. O Pantanal também está secando por uma exploração da natureza.

Quando conseguiremos entender que a falta de luz e de ar-condicionado tem relação direta com em quem a gente vota? Quem está denunciando esses venenos nas nascentes do Pantanal está sendo perseguido. Estamos vivenciando uma crise grande, e esse governo dificulta tudo ainda mais.

Acho que o audiovisual tem o poder de criar memória afetiva, de a gente ver o Pantanal queimando e lembrar na novela. Espero que isso contribua para uma maior conscientização nossa e do governo sobre o que precisa ser feito agora para que a gente tenha água nos próximos anos.

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Você se tornou uma voz importante do empoderamento LGBTQIAP+. O que as pessoas que lutam contra o preconceito e para viver a sexualidade com liberdade têm precisado ouvir para tornar a caminhada menos dura?

São tantas respostas... Somos muitas e diferentes, depende de onde a gente mora, da cor da nossa pele, das escolhas de cada uma. Ao longo dos últimos anos, a gente tem construído uma cultura lésbica. Ser sapatão não é só sobre amar ou fazer sexo com mulheres, mas sobre uma identificação histórica cultural, sobre um pertencimento que só é possível quando a gente encontra esse coletivo. Isso sempre vai ser importante, porque sozinha é muito difícil.

O que seria essa cultura sapatão?

A ideia de cultura sapatão é estender o que, para mim, é a vivência e a experiência de ser sapatão. Existem conversas e maneiras de perceber o mundo que só as sapatonas têm. Quais são as piadas das quais só a gente ri? Como vemos o mundo? Como nossa vivência pode ser interessante para o mundo no momento que não tem um homem aqui, para além da nossa sexualização, de duas mulheres se beijando? Há uma cultura musical explícita, Cássia Eller, Ana Carolina, Bia Ferreira. Há lacunas no audiovisual. O que gostaríamos de ver e não vemos?

As teóricas feministas lésbicas Adrienne Riche e Monique Wittig falam sobre esse deslocamento da estrutura patriarcal que ser sapatão significa, no sentido do que esperavam da gente enquanto mulher. Parece simples, mas é desestabilizador para o sistema. Porque não existe uma necessidade de baixar a cabeça para um homem. Há uma possibilidade de subversão.

Para mim, a cultura sapatão é entender que isso atravessa a minha experiência, o meu trabalho, a maneira como construo uma personagem, que escrevo um roteiro, a minha escuta. Ser sapatão não é só uma orientação, é também uma identidade. Para além de sexo e romance, é uma identificação cultural, um pertencimento emocional, um lugar no mundo.

Muita gente fica com mulheres, mas não pertence ao mundo sapatão. Me sinto pertencente. Acho que ser sapatão traz a oportunidade de se ver. Porque a gente é educada para ser algo que nem sabe se quer. Gostar de homem, transar com homem, amar os homens, querer trabalhar com homem...

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Qual a importância da ressignificação da palavra “sapatão”, antes usada para ferir lésbicas?

É enorme, porque as capturas da nossa subjetividade se dão no dia a dia. Você fala: "Você está tentando me xingar de algo que eu sou, não vai dar para me ofender". Essa é a construção do orgulho. Aquela famosa coisa que a gente precisa entender: LGBTfobia é um problema das pessoas "héteras", assim como o racismo é um problema das brancas.

A cantora Zélia Duncan, com quem vê rodou o filme "Uma paciência selvagem me trouxe até aqui", disse que meninas lhe devolveram o orgulho de ser sapatão. Qual é a maior contribuição da nova geração de lésbicas para o mundo contemporâneo?

É porque a geração da Zélia pôde construir antes que a gente está podendo falar mais sobre isso hoje. Falar que estamos aqui. Mas a partir de agora, a gente precisa falar também sobre as nossas faltas? Temos a pauta da maternidade, da inseminação artificial, das sapatonas não "bináries", das pessoas que não se identificam nem como homem nem como mulher, a saúde lésbica...

Quais são as principais questões da saúde lésbica?

Tem tanto a física quanto a mental. O quanto psicólógos e terapeutas estão abertos a construir algo junto com o paciente? Entender que, talvez, não saibam tudo e precisam aprender? Precisamos estar atentas, porque quando achamos que está tudo bem, vem alguém da nossa confiança que não valoriza nossa vivência, inviabiliza nossa experiência, tenta cortar nossas asas. Óbvio que há profissionais incríveis, continuo fazendo análise, mas, às vezes, o mundo não é legal, essas pessoas estão em todos os lugares.

Em relação à saúde física, há a violência ginecológica. "Você não transa com pênis, então, nem preciso te examinar". Muitas deixam de ir ao médico porque têm medo dessa violência. Há também um tabu. Acham que o sexo entre vulvas não tem ISTs ( Infecções Sexualmente Transmissíveis ), mas tem muitas. Que proteção o SUS oferece? Tem uma camisinha que precisa cortar com tesoura. Há um negócio de dentista chamado dental dam . É o que as pessoas com vulva usam fora do Brasil, mas a venda aqui é proibida. Aí, tem papel filme, que dizem não ser bom. É uma precariedade, uma invisibilização...

Também estamos falando de lesbocídio. É difícil mapear quais assassinatos são por questões de lesbofobia porque a gente não tem um mapeamento das mulheres.

Tem ainda a inseminação artificial, que é muito cara. É possível fazer pelo SUS, mas a fila é longa. Há também a violência dentro do consultório. "Quem é o pai?". Registro no cartório não é fácil e nem sempre é bem aceito. Quando a criança está maior, a questão de encontrar uma escola que entenda que ela tem duas mães...

Bruna Linzmeyer Foto: Divulgação / Jorge Bispo
Bruna Linzmeyer Foto: Divulgação / Jorge Bispo

Você falou em inseminação artificial. Tem vontade de colocar uma criança nesse mundo?

Tenho muitas amigas crianças, mas nunca tive vontade de ser mãe. Dizem: "Você vai mudar de ideia, é muito nova". É violento ouvir isso. Tenho escolhido até esse momento não ser mãe. Não tenho vontade nem perspectiva de ser os próximos anos. E tudo bem. Tenho outras vontades na vida. Sou mãe dos meus filmes. Isso não significa que eu não lide com a maternidade. Tenho uma construção grande com a maternidade enquanto filha e com minhas amigas.

O ator Carmo Dalla Vecchia disse que, por mais que a pessoa vá resolvendo isso ao longo da vida, existe um preconceito interno ao se descobrir gay, porque a gente nasce ouvindo que é errado. Enfrentou esse dilema?

Tudo era um pouco não falado enquanto eu cresci. Sapatão, então, nem existia. Não se falava essa palavra. Tive uma educação da roça. Meus pais, amorosos, construíram minha autonomia e liberdade, apesar de eu ter crescido numa cidade conservadora ( "Corupá", em Santa Catarina ). Quando me descobri sapatão, encontrei com esse mundo dentro e fora de mim, foi uma farra, uma alegria. Fez sentido para mim. Não tive dor. Ao contrário, pensei: "Ah tá, então, esse é o mundo, vivi para chegar aqui, simbora!".

A primeira vez que namorei uma mulher foi em 2015. Mas já vinha me relacionando com mulheres antes disso. Uma vez que fui vivendo isso de 2015 para cá de uma forma mais consciente, pude também recuperar memórias de um passado que não sabia que existia. Amei outras mulheres que considerava amigas na adolescência. A gente não via como amor romântico. Era algo que acontecia e ninguém falava sobre. Porque existe essa invisibilização. Não é nem dado como uma possibilidade para a gente. Para mim, não foi. Tipo: "Olha, você também pode amar meninas". Mas eu vivia isso.

Estava muito confortável dentro de mim, mas o mundo não fica confortável quando uma mulher, principalmente, uma mulher sapatão está confortável. Fui encontrando esses preconceitos que acabaram me capturando. Tive esse péssimo encontro com uma psicanalista lacaniana. Vivi anos de lesbofobia, de muita opressão dentro do consultório. Ela não assumia que as relações com mulheres eram importantes para mim, dizia: "Isso é uma fase".

Qual foi o maior absurdo que ouviu dela?

Esse tipo de opressão é tão violenta porque não se dá numa frase feita. É aos poucos, numa forma de falar, numa pergunta, num jeitinho. Quando eu vi, não dançava mais, não bebia, não amava, não me divertia mais. Parei até de escrever, de fazer meus projetos. Falei: "O que aconteceu comigo?". Olhei para trás e tinha vivido anos de um abuso que tive dificuldade em perceber. Tenho uma amiga que viveu uma frase feita. Ficou um mês e meio até a psicanalista falar: "O que você precisa é de um caminhoneiro e não de um caminhão".

Nossa, que coisa agressiva. No seu caso, a terapeuta foi minando a sua autoconfiança, né?

Exatamente. Ela me fez duvidar de mim, da minha escolha, do meu desejo, da minha autoidentificação. Dessas frases feitas, ela disse: "Só um falo pode substituir outro falo". Oi? Há algo muito falocêntrico no mundo, que só valida as relações que têm pênis. A coisa mais agressiva que ela disse, e diz muito sobre o mundo que a gente vive, foi: "Você não é lésbica". Imagina alguém falar para você: "Maria, você não é mulher".

Junto com essa aceitação de si mesma, da descoberta da sua sexualidade, veio uma libertação no sentido de não se cobrar um corpo padrão, de não se depilar, né?

Foi. Muita gente fica com mulher, mas nem sempre pertence ao mundo sapatão. Me sinto pertencente a essa comunidade. Ser sapatão traz a oportunidade de se ver. Porque a gente é educada para ser uma coisa e nem se pergunta se quer. Amar homem, transar com homem, querer trabalhar com homem. A gente quer tudo com os homens.

Se apaixonar por uma mulher é adentrar um mundo em que o centro dele não é um homem, mas nós. Comecei a me questionar sobre o que me ensinaram. "Ah, então posso ser amiga das mulheres, a pessoa que mais quero trabalhar pode ser uma mulher, quem eu amo e quero dormir de conchinha também pode ser mulher". A possibilidade de o amor entre mulheres existir é revolucionário e transformador. Foi com isso que me encontrei.

E aí, junto vêm essas coisas mais banais, tipo: "Posso ter pelo, cabelo e unha curta, não preciso usar roupa justa o tempo inteiro, nem ser muito magra". Gosto do meu corpo assim, com essas gordurinhas. Existe um outro mundo, sabe?

Bruna Linzmeyer Foto: jorge bispo / Divulgaçao/ Jorge Bispo
Bruna Linzmeyer Foto: jorge bispo / Divulgaçao/ Jorge Bispo

Um mundo que não precisa da aprovação masculina...

Exato. Gosto de quem sou quando estou com mulheres sapatonas. Me sinto mais confortável, legal, generosa, relaxada. Isso é precioso, porque sou também a partir de como o outro me vê. Como as sapatonas me enxergam é muito mais legal do que como os homens me veem. De um jeito mais sincero, real. É através desse encontro com outras mulheres que amam mulheres que também me encontro dentro de mim.

Voce perdeu muito trabalho em publicidade quando se declarou lésbica? Hoje, você faz bastante propaganda nas redes....

Quando saiu no jornal, em 2015, vários trabalhos de publicidade que eu tinha na agenda foram cancelados. Até hoje, acho que muitas coisas não chegam até mim porque sou sapatão, uma mulher adulta que usa os pelos naturais ou porque não sou tão feminilizada quanto poderia ser.

As coisas mudaram muito de 2015 para cá e me sinto agente dessa mudança. Hoje, tem uma publicidade interessada, fico feliz de trabalhar com marcas que valorizam quem eu sou, acham importante eu ter essa liberdade, essa coragem, esse conforto com o meu corpo.

O audiovisual vai aos poucos, está engatinhando até que, de fato, a gente possa contar essas histórias, ser protagonista, diretora, roteirista.

Você rodou dois filmes recentes com mulheres e está desenvolvendo outros dois cercada por elas também. Ter mulher à frente dos projetos é um fator determinante para você estar nele? É interessante pensar isso, porque sempre fomos "estragadas", digamos assim, pelo pensamento de que a gente compete...

Me interessa muito quando as mulheres estão. Continuo trabalhando com pessoas que não são mulheres e é legal também. Não dá para a gente romantizar e falar que só porque e mulher é legal. Também tem muita sapatão péssima. Mas quer dizer que, talvez, a gente compartilhe de uma cultura, de uma memoria afetiva que possa construir coisas a partir dessas vivências. Me interessa essa construção.

Ter na direção um homem que não se sente ameaçado por uma equipe de mulheres também pode ser legal. A gente vai construindo possibilidades reais de troca para além do gênero. Agora, é estarrecedor um set de filmagem com uma mulher como chede de equipe, é muito foda! É só olhar nos olhos que a gente sabe do que a outra está falando.

Você escreveu um curta de animação com a sua namorada, Marta. Do que se trata?

Se chama "Tomate canoa". A gente conversa muito sobre a teoria do "anormal". O que é ser um corpo anormal? Hoje em dia, é do que mais me xingam. "Ah, você até pode ser isso, mas não é normal". Ser normal é o que? Ficar julgando a maneira como me relaciono só porque é desviante da norma? Resolvi pegar esse xingamento para mim, como fizemos com sapatão. O filme tem a ver com essa ideia. Como é que um corpo anormal percebe o mundo? É uma historinha de ficção sobre uma menina que colhe tomates.

Há ainda outros dois filmes em que está trabalhando, né? Um deles se chama "Corupá", nome da cidade onde você nasceu. É biográfico?

Um desse filmes é "Vulkan", que a Júlia Zakia me chamou para escrever com ela. É sobre um triângulo amoroso sapatão. Fala sobre essas possibilidades de amor. Vou atuar também, faço uma das mulheres do triângulo. "Corupá" não é uma história biográfica, só se passa na cidade em que cresci e tem relação com o modo como ela funciona, a plantação de banana, a roça, a quantidade de água que tem lá, o conservadorismo.

As personagens principais não vão ser "héteras", mas é a história de uma família de duas mulheres e uma filha, mas nenhuma tem relação amorosa entre si. Tem uma ideia de escape das estruturas normativas do mundo e aí há relação comigo nesse sentido... Mas é a maneira que enxergo a vida. Todos os trabalhos que eu venha colocar no mundo vão falar de um desvio, de um desencaixe.