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Cultura

Busca por livros de psicanálise cresce durante a pandemia, com leitores ávidos por reflexões sobre o mal-estar da civilização atual

Aumento da venda de clássicos e de novos títulos que propõem uma articulação com a política e discussões sobre gênero e raça surpreende editores e livreiros; psicanalistas suspeitam de 'esgotamento da autoajuda'
Confinados e ávidos por reflexões sobre o mal-estar da civilização atual, leitores procuraram mais livros de psicologia e psicanálise Foto: André Mello
Confinados e ávidos por reflexões sobre o mal-estar da civilização atual, leitores procuraram mais livros de psicologia e psicanálise Foto: André Mello

SÃO PAULO — Já estava nos planos da editora Planeta havia algum tempo lançar uma versão brasileira do Paidós, selo argentino que publica um dos assuntos favoritos dos hermanos : psicanálise. Mas aí veio a pandemia, livrarias fecharam, a venda de livros despencou, e os leitores, forçados às compras on-line, se afastaram dos lançamentos para abastecer as estantes com clássicos (lembra quando o pessoal inventou de ler "Guerra e paz" na quarentena ?). Prevista para abril, a estreia do selo acabou suspensa.

Nos últimos meses, porém, houve uma profusão de lives de psicanalistas falando sobre os efeitos subjetivos do confinamento e denunciando as pulsões mortíferas que tomaram a política brasileira. E livros como "Cartas a um jovem terapeuta", de Contardo Calligaris, e "O psicanalista e o palhaço", de Christian Dunker e Claudio Thebas, lançados no ano passado, atingiram vendas impressionantes (20 mil e 35 mil exemplares, respectivamente). O interesse por obras que ajudem a entender nosso mal-estar e nossa civilização ficou evidente, e o Paidós foi, enfim, lançado, em julho. Desde então, o selo já publicou três títulos. A primeira tiragem de um deles, "Cartas de um terapeuta para seus momentos de crise", de Alexandre Coimbra Amaral, com 8 mil exemplares, se esgotou rapidamente. De olho nisso, para o ano que vem o Paidós promete livros de Dunker, Thebas e Amaral sobre depressão, comunicação não violenta e a esperança que "não tem medo da morte".

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A procura por obras de psicologia e psicanálise desde o início da pandemia surpreendeu editores e livreiros. Aumentou a busca por livros que tratem de parentalidade, relacionamentos abusivos e ansiedade. Cresceu também o interesse por clássicos de Sigmund Freud, o pai da psicanálise . E houve um boom de publicações articulando a teoria psicanalítica com a política e as discussões sobre raça e gênero.

— Talvez mais do que nunca precisemos da psicanálise, e até da psiquiatria, para lidar com a política — afirma Cassiano Elek Machado, diretor editorial da Planeta.

No Grupo Autêntica, as vendas de livros psi cresceram 47% neste ano. Lançado em maio ("com certa descrença", confessa Rejane Santos, diretora executiva), "Talvez você deva conversar com alguém", relato da psicóloga americana Lori Gottlieb sobre sua própria terapia, já foi reimpresso quatro vezes, chegando a 22 mil cópias até agora. Em outubro, o livro alcançou o nono lugar de não ficção na lista de mais vendidos elaborada pelo Publishnews e publicada no GLOBO aos sábados.

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O sucesso de "Talvez você deva falar com alguém" impressionou Rui Campos, proprietário da Livraria da Travessa, que descreve o livro como "um fenômeno" (o quinto mais vendido do mês) e conta que Freud também tem saído bem: tanto as "Obras completas", da Companhia das Letras, quanto títulos como a edição bilíngue de "Além do princípio do prazer", que precisou ser reimpresso menos de dois meses após o lançamento pela Autêntica. "O mal-estar na cultura", outro texto clássico de Freud publicado pela mesma editora, vendeu 2.700 cópias (mais de meia tiragem) em 20 dias.

Da live ao livro

Para Rejane Santos, o sucesso de livros que botam a psicanálise para dialogar com a política e a cultura deve-se ao interesse do público em "respostas coletivas" para o nosso mal-estar. E ela reconhece a contribuição das lives psicanalíticas para a boa acolhida desses títulos. A Companhia das Letras também. Em outubro, a editora promoveu, no YouTube, o festival "No Divã: a psicanálise hoje". Desde o início da pandemia, a editora tem investido em festivais on-line . Mas "No divã" surpreendeu.

— Nos outros festivais, cada mesa tinha, em média, de 150 a 200 espectadores. Em "No divã", a média foi de 500. Na mesa do (psicanalista) Marco Antonio Coutinho, sobre fantasia na psicanálise, batemos 800 espectadores ao vivo — diz Ricardo Teperman, publisher da Zahar, selo da Companhia que publica, entre outros, o psicanalista francês Jacques Lacan. — Ficamos surpresos, porque eram temas psicanalíticos densos, não "como cuidar de si" ou "como viver melhor".

De fato, esses leitores não estão atrás de autoajuda. A editora WMF Martins Fontes reportou um aumento expressivo na venda de livros considerados "áridos", como "Sobre a morte e o morrer", de Elisabeth Kubler-Ross (50%), e "Psicologia das multidões", de Gustave Le Bon (242%). E as vendas da editora Zagodoni, especializada em psicologia e psicanálise, subiram 30% este ano.

— Os livros que têm mais saída são sobre o pensamento de psicanalistas consagrados — afirma o editor Adriano Zago. — Também aumentou o interesse por obras que abordam a prática clínica e seus desdobramentos, como "Atendimento psicoterapêutico do luto", de Maria Helena Franco, e, é claro, livros cujos autores têm mais visibilidade nas redes sociais, o que ajuda muito na difusão da obra.

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Um dos principais responsáveis pela proliferação de vídeos e livros psicanalíticos (na internet e nas estantes) é Christian Dunker. É difícil contar nos dedos todos títulos que ele publicou nos últimos anos: "A arte da quarentena para principiantes", "O palhaço e o psicanalista", "Paixão da ignorância" etc. Professor da Universidade de São Paulo e dono do canal "Falando nisso", no YouTube, ele suspeita que a procura pela psicanálise tenha a ver com um esgotamento da autoajuda.

— Numa época de discursos genéricos e rarefeitos, em que nos sentimos sós e retraídos, a psicanálise atrai porque é autodescoberta e aventura de si — diz.

O divã ainda é o divã

A psicanalista Vera Iaconelli, que prepara um livro sobre "reprodução de corpos e sujeitos" para a Zahar e é uma das organizadoras da "Coleção Parentalidade & Psicanálise", da Autêntica, concorda que a autoajuda não deu conta das demandas subjetivas dos confinados. Ela supõe que a quarentena tenha criado um tempo propício para a leitura psi, pois muita gente, além de confinada, estava fazendo terapia on-line, disposta a ler, cheia de angústia e assistindo a lives com psicanalistas na internet. A quem se debruçou sobre textos psicanalíticos durante a pandemia Vera aconselha: nenhuma leitura substitui uma boa análise.

— Qualquer um consegue ler Freud, mas para entender a psicanálise em profundidade é preciso ter intimidade com o próprio inconsciente — ela diz.