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Caçadores do Rio Perdido garimpam acervos, feiras e jornais e fazem descobertas deliciosas

Conheça quem resgata a memória carioca fora dos arquivos tradicionais
O hipódromo Prado Guarany, entre os bairros de São Cristóvão e Santo Cristo, era palco de corridas de cavalo e touradas: como esta que aparece em 1910, em um raro registro do interior de uma praça de touros Foto: Coleção Jaque de Barros / Divulgação
O hipódromo Prado Guarany, entre os bairros de São Cristóvão e Santo Cristo, era palco de corridas de cavalo e touradas: como esta que aparece em 1910, em um raro registro do interior de uma praça de touros Foto: Coleção Jaque de Barros / Divulgação

RIO — Patrícia Pamplona tem um superpoder. Jornalista por formação, ela se especializou em buscar registros raros de lugares que não existem mais. Fuçando acervos esquecidos ou negligenciados em algumas instituições, já encontrou agulha em palheiro. Em uma foto indexada no Museu da Imagem do Som com o termo genérico “restaurante”, por exemplo, identificou o quase não documentado interior do restaurante do Palácio Mourisco em 1907. Em um acervo particular que poucos historiadores conhecem, encontrou cenas da pitoresca cultura das touradas no Santo Cristo dos anos 1910. Ou ainda panoramas irreconhecíveis do que foram os principais bairros da cidade.

Com curiosidade detetivesca, Patrícia faz parte de um grupo de pesquisadores informais de diferentes áreas que busca peças no quebra-cabeças do Rio — que, na véspera de comemorar 455 anos , ainda guarda segredos.

— O meu interesse é pelo Rio de Janeiro, essa cidade que amo e odeio — resume Patrícia. — Meu olhar pelas imagens não é saudosista. Eu busco fazer perguntas, ligar os pontos. Porque as imagens não falam por si. Nenhum documento fala por si.

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Interior do Palácio Mourisco, em foto de Augusto Malta de 1907 Foto: Museu da Imagem e do Som
Interior do Palácio Mourisco, em foto de Augusto Malta de 1907 Foto: Museu da Imagem e do Som

Na correria do dia a dia, os rastros desse Rio de outrora passam batido para a maioria das pessoas. Escondem-se em rolos de negativos vendidos em feiras de rua, páginas empoeiradas de jornais e outros depósitos negligenciados. Os dois livros da série “O Rio pelo alto”, publicados por Patrícia em 2014 e 2017, foram feitos a partir de fotos inéditas esquecidas em algum canto do Museu Aeroespecial. Com Isabela Mota, ela lançou ainda "Vestígios da paisagem carioca" (Editora Mauad).

Já o músico e jornalista Rafael Cosme busca suas joias literalmente no chão. Estão espalhadas em lotes de antigos fotógrafos amadores vendidos nas feiras de rua, e que trazem slides Kodachrome, rolos de negativos e fotos que provavelmente não seriam vistas nunca mais.

Um passeio de carro pelo Alto da Boa Vista em 1958: foto encontrada por Rafael Cosme na feira de antiguidades da Praça XV Foto: Coleção Rafael Cosme
Um passeio de carro pelo Alto da Boa Vista em 1958: foto encontrada por Rafael Cosme na feira de antiguidades da Praça XV Foto: Coleção Rafael Cosme

Seus achados incluem uma série de fotos de um grupo de amigos subindo o Morro da Babilônia em 1958, passeios de carro pela Barra da Tijuca deserta dos anos 1960, a chegada do surfe ao Arpoador, festas em apartamentos na época da bossa nova e outros flashes da vida comum que não se encontram nos museus. Dentro de um projeto intitulado “O passado é um ponto de luz”, Cosme posta as melhores fotos no seu instagram (@villlalobos).

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— O Rio é uma cidade com pouco registro visual da vida comum — diz Cosme. — Tivemos grandes fotógrafos no século 19 e início do século 20, mas é um acervo que, apesar de maravilhoso, já estamos cansados de ver. Há muito mais guardado em coleções amadoras, dos fotógrafos de fim de semana, e o meu papel é ir atrás dessas relíquias.

Uma mulher chamada Rita posa como dona do mundo no alto do Morro do Leme, em 1949 Foto: Coleção Rafael Cosme
Uma mulher chamada Rita posa como dona do mundo no alto do Morro do Leme, em 1949 Foto: Coleção Rafael Cosme

Mas o próprio pesquisador pouco sabe sobre as origens dessas imagens. Um dos maiores sucessos de seu feed mostra uma mulher sentada em uma cadeira no topo do Morro da Babilônia , posando como se fosse a dona do mundo diante de um belo panorama da cidade. Apesar das quase 2 mil curtidas, a única informação que se tem são as anotações que ficaram marcadas na parte de trás da foto em preto e branco: “Rita, no Rio de Janeiro, em 1949”.

Se ainda sobram mistérios sobre a misteriosa Rita, outras postagens reavivaram memórias. Como uma série fotografias de um grupo de amigos celebrando o revéillon de 1977 em Copacabana, que mostra uma festa começando no terraço de um apartamento e terminando na praia, ao amanhecer.

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— Quando publiquei, a filha de uma das personagens reconheceu a mãe — conta Cosme. — No fim, conseguimos identificar a maior parte dos convidados e descobrimos que o autor das fotos perdeu as fotos por conta de questões familiares.

Casal abraçado na praia de Copacabana no revéillon de 1977 Foto: Coleção Rafael Cosme
Casal abraçado na praia de Copacabana no revéillon de 1977 Foto: Coleção Rafael Cosme

Ao mesmo tempo em que coleta fragmentos visuais da cidade, Cosme também se debruça no que ele chama de “redes sociais do passado”: o acervo de periódicos da Biblioteca Nacional. Eles são a base para um livro com sugestões de programas por bares, restaurantes, boites e boutiques que já não existem mais. O texto, que deve sair em 2020, passeia pelos bairros como eles eram, rua por rua, listando as opções de lazer.

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A mesma hemeroteca digital é o parque de diversões de Rafael Monte, conhecido na web sob o pseudônimo Venceslau Gama. O seu perfil no Twitter (@venceslau_gama) recupera personagens e casos pitorescos em propagandas, notícias e crônicas publicadas nos jornais antigos.

Com o lema “o registro é o da galhofa”, Monte redescobriu figuras ainda à margem da história apesar de terem sido importantes no cotidiano da cidade em seu tempo. Ninguém lembrava do folclórico Novidades, um reclamista que se fantasiava de Tio Sam para fazer anúncios de produtos pelas ruas. Em nome do marketing, forjou a própria morte e quase sempre acabava preso por desordem pública. Outra descoberta é o infame Pão-Duro, cuja avareza teria originado o termo.

Anúncio de remédio dos anos 1910 publicado por Rafael Monte em seu twitter (@venceslau_gama) Foto: Reprodução
Anúncio de remédio dos anos 1910 publicado por Rafael Monte em seu twitter (@venceslau_gama) Foto: Reprodução

Monte mantém ainda o blog “Antologia de humor”, em que recupera as crônicas de autores como J. Repórter, João Foca e Urbano Duarte nos jornais do início do século XX. Em sua maioria nunca publicadas em livros, elas revivem as epidemias de malária, xingam o bonde que não funciona , reclamam da boemia que já não era “a mesma de antigamente” naquela época, e celebram ruas hoje desaparecidas (”Derrocam-se impérios, extinguem-se dinastias, fundam-se repúblicas, tudo se transforma, mas a rua do Sabão continuará a ser a rua do Sabão”, escreveu Urbano Duarte).

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A partir dos textos de João Foca publicados na primeira década de 1900, Monte chegou a fazer uma lista expressões dos tempos dos nossos bisavós e que caíram em desusos há décadas. Alguns exemplos: amarrar a lata (acabar o namoro), capim está caro (não dar confiança a alguém), dança de rato (confusão, pancadaria), mostrar a força dos pastéis (revelar a verdadeira personalidade) ou ainda montar num porco (ficar desconcertado ou encabulado).

— A crônica humorística é um excelente repositório da linguagem popular — diz Monte. — João Foca, também autor teatral, tinha um ouvido atento às gírias, bordões e modismos que surgiam.