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Cultura

Carlo Ginzburg: 'Os usos políticos da mentira são notícia velha'

Para historiador italiano, conhecido por investigar o passado revisitando figuras anônimas, o que há de novo são as tecnologias, que permitem a rápida disseminação de fake news, e como estamos mais fracos diante delas
O historiador italiano Carlo Ginzburg: "Não podemos cair no positivismo ingênuo que diz que há fatos e ponto. Até a mentira pode ser interpretada por historiadores" Foto: Monica Biancardi / Divulgação
O historiador italiano Carlo Ginzburg: "Não podemos cair no positivismo ingênuo que diz que há fatos e ponto. Até a mentira pode ser interpretada por historiadores" Foto: Monica Biancardi / Divulgação

O italiano Carlo Ginzburg decidiu tentar a vida de historiador depois de ler um ensaio “Réflexions d’un historien sur les fausses nouvelles de la guerre” (Reflexões de um historiador sobre as notícias falsas da guerra”), publicado pelo francês Marc Bloch, um dos fundadores da Escola dos Annales, movimento historiográfico de grande influência no século XX. Bloch analisou as fake news que circulavam nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e convenceu Ginzburg de que a mentira também merecia a atenção do historiador.

Ginzburg revolucionou os estudos historiográficos ao popularizar, a partir dos anos 1980, a “micro-história”, que privilegia não a trajetória de grandes homens ou nações, mas abordam o passado por meio de figuras anônimas e fatos cotidianos, aprofundando-se em casos particulares para iluminar estruturas sociais mais amplas. Num de seus livros mais famosos, “O queijo e os vermes”, ele reconstitui a vida de um moleiro da região de Veneza acusado de heresia pela Inquisição.

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O autor italiano também arrumou briga com colegas convencidos por teorias pós-modernas de que não havia limites claros entre fato e ficção e que a historiografia, mais do que a busca da verdade, era um exercício de retórica. Em entrevista ao GLOBO, por Skype, o historiador afirma que a atitude pós-moderna nos tornou mais fracos diante das fake news e que interpretações que relativizam o passado autoritário não são debatidas no campo da historiografia, mas da política.

A mentira é objeto de estudo do historiador?

A mentira é tema de duas obras-primas historiográficas do século XX: “Os reis taumaturgos”, de Marc Bloch, e “O grande medo de 1789”, de George Lefebvre. Ambas mostram as consequências políticas da disseminação de informações falsas, como fake news se tornam “fatos”. O livro de Lefebvre fala de boatos que se espalharam pela França, segundo os quais os aristocratas pretendiam se vingar dos camponeses por causa da Revolução. O livro de Bloch é um ensaio sobre as raízes do poder monárquico na Europa. Na Idade Média, difundiu-se a lenda de que os reis curavam doentes ao tocá-los. Essa lenda reforçou o poder real na França e na Inglaterra, e Bloch revela a política por trás dos boatos. Ele também escreveu um livro sobre notícias falsas na Primeira Guerra Mundial que me convenceu a tentar ser historiador.

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O senhor é conhecido por seus embates com historiadores pós-modernos que afirmam a impossibilidade de se traçar um limite entre fato e ficção. Enxerga alguma relação entre a atitude pós-moderna e o fenômeno das fake news?

Seria ridículo culpar o pós-modernismo pelas fake news, mas ele tornou as pessoas mais fracas diante delas. A intenção podia ser boa, mas o resultado político é catastrófico. Lutamos contra as fake news provando que são falsificações. Se a noção de falsificação não faz mais sentido e não distinguimos mais fato e ficção, estamos perdidos.

Sapatos das vítimas aprisionadas pelos nazistas no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, durante a Segunda Guerra Mundial Foto: DANIEL RODRIGUES / NYT
Sapatos das vítimas aprisionadas pelos nazistas no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, durante a Segunda Guerra Mundial Foto: DANIEL RODRIGUES / NYT

Existe verdade histórica?

Sem dúvida! A noção de fato é complicada, porque pode se referir a eventos reais ou a documentos cujo conteúdo é fictício. Quando eu trabalhava com os arquivos da Inquisição, minha tarefa era checar não a veracidade, mas o valor simbólico de declarações de camponeses que afirmavam, por exemplo, poder voar e se transformar em animais. Não podemos cair no positivismo ingênuo que diz que há fatos e ponto. Até a mentira pode ser interpretada por historiadores. A pluralidade e a refutação de diferentes interpretações é parte do debate. Já dizia o filósofo Karl Popper que uma sentença irrefutável não é científica.

O negacionismo e a disseminação de informações falsas são constantes na Histórica ou dependem de determinadas condições para surgir?

A palavra “negacionismo” apareceu para se referir àqueles que negam o Holocausto e agora vem sendo usada para se referir à negação da gravidade da pandemia e do coronavírus. É um negacionismo deliberado, que tem consequências terríveis. Os usos políticos da mentira são notícia velha. Novas são as tecnologias que permitem disseminação de fake news tão rapidamente e para tantas pessoas, o que era impossível quando as notícias dependiam da comunicação oral.

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Em “O fio e os rastros”, o senhor discute o verdadeiro, o falso e o fictício. Qual a diferença entre o falso e o fictício?

A palavra ficção vem do latim, fictio , que se referia ao ato do oleiro modelar a argila e depois foi usada para nomear um gênero literário. Na origem, ficção tem a ver com manipulação. Mas ficção não é falsidade. Robinson Crusoé não é mentira, é ficção. Já as fake news são ficções que se apresentam como verdadeiras. Logo, são falsas. Os historiadores podem trabalhar com a mentira e a ficção para extrair delas algo que está além da intenção dos autores. Walter Benjamin disse para lermos a história a contrapelo. Para mim, isso quer dizer analisar a evidência históricas contra a intenção dos que a produziram.

No mesmo livro, o senhor afirma que os historiadores têm como ofício “destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a trama do nosso estar no mundo”. Esse ofício se tornou mais urgente desde a publicação da obra, em 2005?

Talvez, mas não por boas razões. Ainda hoje, estou de acordo com essa frase, porque ela deixa claro que o trabalho técnico do historiador tem a ver com nossa vida cotidiana. O verdadeiro, o falso e o fictício constituem nosso mundo.