Cultura

Cartas de papel ganham novos adeptos trazidos pela pandemia e fadiga digital

Correspondentes buscam descansar das telas, driblar o isolamento e se conectar de forma mais profunda com amigos
'Cantinho da carta' na Biblioteca Amarela, livraria de Petrópolis que migrou para a internet durante a pandemia Foto: Anna Luiza Guimarães
'Cantinho da carta' na Biblioteca Amarela, livraria de Petrópolis que migrou para a internet durante a pandemia Foto: Anna Luiza Guimarães

Na segunda-feira (7), quando WhatsApp , Instagram e Facebook colapsaram, meio mundo achou que estávamos às portas do apocalipse . A cuidadora infantil Flavia Botacini, porém, nem se se abalou. Paulista que vive no Canadá, ela aproveitou as horas livres de notificações para ler um livro, escrever cinco cartões-postais e responder uma carta . Botacini começou a se corresponder com pessoas ao redor do mundo em 2017, mas o vaivém de envelopes se intensificou no último ano e meio, na pandemia. Hoje, ela troca cartas e postais com 21 pessoas.

— O primeiro lockdown foi muito pesado. Fiquei isolada em casa, sem contato com ninguém. Colocar meus sentimentos no papel e mandar para alguém foi reconfortante. Meus correspondentes criaram uma bolha de carinho ao meu redor e me ajudaram a manter a calma e saber que eu não estava sozinha — conta.

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Desde o início da pandemia, muita gente tirou os envelopes da gaveta e caprichou na caligrafia para mandar notícias, desabafar ou apenas escrever algumas palavras de carinho para manter próximo quem estava em isolamento social. Afinal, como citou Michel Temer, ex-presidente e missivista : “ verba volant, scripta manent ” (palavras voam, mas o que é escrito permanece).

Criado pela estudante de jornalismo mineira Mariana Loureiro em junho de 2017, o clube de cartas Envelope de Papel tinha menos de 500 membros em janeiro de 2020. Este mês, ultrapassou os 3.100. Os membros do clube têm acesso a uma planilha com os endereços uns dos outros. Loureiro sugere que cada novo integrante se corresponda com pelo menos uma pessoa de cada região do país e uma do exterior (brasileiros que vivem em Portugal, França, Estados Unidos, Japão e Austrália participam do clube). Ela própria estima ter entre 30 e 40 correspondentes e admite que às vezes demora para respondê-los.

— O importante é responder com dedicação. Trocar cartas não deve deixar ninguém estressado ou ansioso com prazos — defende ela, que dá dicas para quem não sabe o que escrever na primeira carta. — Apresente-se. Escreva sobre você, seu trabalho, sua cidade, o que você gosta de fazer, de comer.

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Cansada das telas de celular e computador depois de quase um ano de trabalho remoto, a social media paranaense Fernanda Trindade se inscreveu no Penpalooza, um clube de cartas criado em junho de 2020, com mais de dez mil membros em 75 países. Começou a se corresponder com uma holandesa que passava a quarentena acompanhada apenas do gato. Somente depois de algumas cartas, elas começaram a se seguir no Instagram, mas a amizade continua estritamente epistolar.

— Áudios e mensagens nas redes sociais são quase sempre superficiais. A gente mal pensa no que está dizendo. No papel, as palavras recuperam seus significados mais profundos e vêm carregadas de sentimento — compara Trindade.

No ensaio “A correspondência”, o filósofo francês André Comte-Sponville afirma que o assunto das cartas é quase sempre o amor. “Seja esse amor de paixão ou de amizade, de família ou de férias, profundo ou superficial”, diz. “Escrevo para dizer que eu te amo, ou que penso em ti, que me alegro, sim, de ser teu contemporâneo (...), de estar separado de ti pelo espaço, não pelo coração”, continua.

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A publicitária gaúcha Larissa Magrisso concorda. Quando as chamadas de vídeo já não davam conta de mantê-la conectada aos amigos de quem a pandemia a afastou, ela recorreu às cartas. Magrisso sempre gostou do que chama de “diferencinhas”: mandar recadinhos ou presentinhos aos amigos só para dizer “penso em ti”. No começo, para não se arriscar, ela mandou cartas por motoboy. Depois, passou a ir aos Correios. Ao completar 40 anos, pediu aos amigos que lhe remetessem cartas, ainda que digitais. Eles escreveram seus votos em papel, fotografaram e enviaram por e-mail ou pelo WhatsApp. Magrisso pretende imprimir todas as missivas digitais que recebeu.

— Colocar sentimentos e desejos de um futuro melhor no papel é bom para quem manda e para quem recebe — diz. — Uma carta é um abraço.

'Carta Conto'

As cartas permitiram à carioca Anna Luiza Guimarães manter seu negócio, a livraria Biblioteca Amarela, apesar da pandemia. Na loja, em Petrópolis, havia até um "cantinho da carta" onde os clientes podiam escrever umas linhas para pessoas queridas. A própria Guimarães se encarregava da postagem. No início da pandemia, ela precisou fechar a loja. Ao migrar a operação para a internet, resolveu oferecer histórias ilustradas embaladas como cartas. A primeira fornada do projeto Carta Conto tinha 275 cópias e esgotou em 15 dias. A segunda, de 350, também já acabou, mas dá para adquirir exemplares avulsos.

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Quem compra qualquer livro na Biblioteca Amarela recebe uma carta. À medida que os clientes se tornam mais próximos, as cartas vão ficando mais longas. Tanto que, agora, Guimarães enfrenta um dilema: como continuar crescendo sem abrir mão das cartas escritas com todo o capricho? A livreira resiste a mandar uma carta padrão para todo mundo. Detalhe: o faturamento da Biblioteca Amarela triplicou no último ano.

Segundo os Correios, em 2020, as cartas simples representaram 17% de todo o tráfego postal brasileiro. Cerca de 78% delas eram cartas comerciais. A pandemia atrasou algumas entregas. A empresária gaúcha Luciana Saraiva esperou nove meses por uma carta da Austrália. No Natal passado, ela participou de um amigo secreto de cartas. A missiva que ela enviou a São Paulo chegou em poucos dias, mas devido às restrições impostas pela Austrália para combater a Covid-19, a carta endereçada a ela ficou meses num limbo postal. A demora era tanta que, em março, o amigo na Oceania escreveu uma nova carta, fotografou-a e enviou pelo WhatsApp. A original só chegou em setembro, mas Saraiva está animada para repetir o amigo oculto epistolar este ano.

— É muito bom receber uma mensagem que não seja na fonte padrão do WhatsApp — conta.

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Organizador do livro “Cartas brasileiras”, o escritor Sérgio Rodrigues compara o autor de uma carta ao autoficcionista que tenta elaborar uma narrativa coerente sobre si.

— Escrever uma carta exige uma introspecção e uma paciência que são incompatíveis com as redes sociais, onde só nos reconhecemos nas curtidas dos outros. Na internet, é intolerável, uma verdadeira tortura escrever algo que só será lido dali a semanas — diz Rodrigues.

Alguns nativos digitais até entendem o encanto das cartas, mas não abrem não da praticidade na internet. Entediada na quarentena, a pernambucana Rayssa Brandão dos Santos, de 18 anos, baixou o aplicativo Slowly, que permite troca de cartas digitais. A depender da distância que separa remetente e destinatário, a missiva pode levar dias para ir de um celular a outro. Santos se corresponde com uma indiana, e as cartas levam 35 horas para chegar. Desde o início da pandemia, o número de usuários do Slowly cresceu 85% e chegou a 4,8 milhões, dos quais 380 mil são brasileiros.

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Professor da USP e estudioso da forma epistolar, Marcos Antonio de Moraes lembra que as cartas “habitam um entrelugar temporal”.

— Escrevo do passado para alguém que talvez a lerá no futuro. Há espaço para o silêncio, para a elaboração do pensamento e para a reconfiguração dos afetos. Enquanto escrevo a um outro, me constituo como sujeito — diz Moraes, que, na adolescência, trocou cartas com escritores como Fernando Sabino e José Paulo Paes. — O desejo de toda carta é o encontro.