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Cultura Celina

Minha poesia, minhas regras: antologia repete clássico de 1976, mas agora com seleção só de escritoras

Em 'As 29 poetas hoje', Heloisa Buarque de Hollanda reúne autoras influenciadas pela quarta onda feminista
Luz Ribeiro (à esquerda), Adelaide Ivánova e Mel Duarte, três das autoras selecionadas para a antologia “As 29 poetas hoje” Foto: Divulgação
Luz Ribeiro (à esquerda), Adelaide Ivánova e Mel Duarte, três das autoras selecionadas para a antologia “As 29 poetas hoje” Foto: Divulgação

RIO —  Duas antologias, duas épocas distintas, um mesmo sentimento: dar conta do “surto poético” que tomou e toma de assalto o país. Em 1976, Heloisa Buarque de Hollanda fez um registro fundamental da produção do período organizando “26 poetas hoje”, publicação que deu visibilidade a autores como Cacaso, Ana Cristina Cesar, Waly Salomão e outros representantes da chamada “geração mimeógrafo”. Quarenta e cinco anos depois, ela repete a dose, só que com um recorte cem por cento feminino. Em “As 29 poetas hoje”, a pesquisadora mergulha na poesia das mulheres — e, em especial, das jovens que surgem na cena cultural.

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Tanto a nova antologia quanto uma reedição do clássico dos anos 1970 chegam às livrarias no dia 18, ambos pela Companhia das Letras. Em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, às 18h30, as redes sociais da editora e da livraria Megafauna transmitem o lançamento de “As 29 poetas hoje”, com a presença de Heloisa e das autoras.

— Em 1976, havia essa sensação de presenciar o levante de novos poetas surgindo em um momento crítico do país — diz Heloisa. — Agora, é a mesma coisa, mas com mulheres. De repente apareceu esse monte de menina com atitude de enfrentamento. A ideia inicial era escolher 26, como na primeira antologia. Não deu, de tanta gente boa que tinha. Aí cheguei ao número de 29, para ficar primo da outra.

Dentre as poetas, alguns nomes são conhecidos de saraus e campeonatos de poesia falada ( Luz Ribeiro representou o Brasil na Copa do Mundo de Slam em 2017), de festivais literários ( Adelaide Ivanova participou da Flip em 2017) e de outras antologias. Recife e Rio marcam presença (com 13 poetas, somadas), assim como a periferia. A produção de autoras negras também ganha força — Heloisa “jura por Deus” que não se trata de cota, escolheu “apenas quem gostava”. Além de jovens, todas elas são, de alguma forma, afetadas pela chamada quarta onda feminista — termo usado para designar um feminismo iniciado a partir de 2012 e ligado ao uso das redes sociais.

Isso implica, segundo Heloisa, em um novo tipo de abordagem política, que, entre outras coisas, trabalha o corpo feminino sem medo. As poetas trazem as dificuldades cotidianas de ser mulher, abordando temas como as dores da menstruação (o poema "cóilica", de Ana Frango Elétrico ), do parto (Marília Floôr Kosby usa a analogia do difícil nascimento de uma vaca em “Mugido”) e do estupro (em “O urubu”, Adelaide Ivánova descreve o exame pericial por que passou depois de ser violentada).

Heloisa Buarque de Hollanda, organizadora do livro "As 29 poetas hoje" Foto: Chico Cerchiaro / Divulgação
Heloisa Buarque de Hollanda, organizadora do livro "As 29 poetas hoje" Foto: Chico Cerchiaro / Divulgação

— Para o feminismo, o corpo sempre foi um problema infinito, que todo mundo tocava com luvas: o objeto da violência, do estupro, do assédio, da maternidade compulsória — lembra Heloisa. — Mas, para essas meninas, o corpo não é problema, é linguagem. Tanto que, em suas performances, tiram a roupa e escrevem no próprio corpo. E dizem: “Ninguém vai botar a mão em mim, porque meu corpo é sujeito e plataforma”. Minha poesia, minhas regras. Elas subverteram o objeto e deram uma invertida violenta em várias coisas.

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A antologia dos anos 1970 trouxe diversos poetas já firmados e outros que se firmariam logo em seguida. Nomes como Waly Salomão, Antonio Carlos Secchin, Bernardo Vilhena, Chacal, Cacaso e Roberto Piva são agora consagrados. Mas, quando “26 poetas hoje” foi lançado, boa parte da produção do período, e especialmente a que ficou conhecida como “poesia marginal”, não era levada a sério pela crítica e pela academia.

Por outro lado, diversos nomes de “As 29 poetas hoje” soam familiares ao leitor de poesia contemporânea, como Mel Duarte, Yasmin Nigri, Bell Puã, Bruna Miltrano, Jarid Arraes , Ana Frango Elétrico, Stephanie Borges, para citar apenas alguns. E desta vez não há separação entre as suas produções e a universidade, até porque muitas delas fazem parte da academia e mantém trabalhos de pesquisa.

— Em 1976 havia muito poeta, mas era mais difícil encontrar um poeta marginal que escrevesse bem — diz. — Não sei por quê, hoje temos uma escrita mais competente, mais sofisticada. Tudo é bem escrito.

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“26 poetas hoje” contava com apenas cinco mulheres — entre elas uma ainda desconhecida Ana Cristina Cesar, que ganhou fama após ser descoberta por Heloisa. A organizadora vê várias diferenças entre a poeta que se suicidou em 1983 e as autoras da nova antologia:

— Ana fazia um jogo de esconde-esconde com o seu interlocutor, sempre colocando em dúvida a imagem que se espera de uma mulher. É o que a mulher sabe fazer desde a Idade da Pedra: sabe o que pode mostrar e o que não pode mostrar para sobreviver. Ana lidava com o efeito da coisa. Já essas meninas usam brutalmente a coisa.

Editora do livro, a poeta Alice Sant’Anna faz parte de uma geração anterior à da quarta onda feminista, que surgiu na primeira década de 2000, revelando nomes como Bruna Beber, Marília Garcia e Angélica Freitas. Um contexto bem diferente do atual, acredita.

— Por um lado, o Brasil de uns anos para cá ficou mais conservador, autoritário, retrógrado — diz Alice. — Por outro lado, nos últimos anos, questões fundamentais ( sobre feminismo e racismo, por exemplo ) entraram no centro da discussão e mudaram radicalmente o debate.