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Cultura Celina

Ainda minoria, mas fazendo história: conheça a trajetória das diretoras indicadas ao Oscar

Pela primeira vez em 93 anos há duas mulheres concorrendo na disputada categoria de melhor direção na festa, que acontece hoje
Chloe Zhao e Emerald Fennell, indicadas ao Oscar de Melhor Direção Foto: AFP
Chloe Zhao e Emerald Fennell, indicadas ao Oscar de Melhor Direção Foto: AFP

Em seus 93 anos de existência, os membros da Academia indicaram aos Oscar de melhor direção apenas cinco mulheres: Lina Wertmuller por “Pasqualino Sete Belezas”, em 1976; Jane Campion por “O piano”, em 1993; Sofia Coppola por “Encontros e desencontros”, em 2003; Kathryn Bigelow por “Guerra ao terror”, em 2009; e Greta Gerwig por “Lady Bird: A hora de voar”, em 2017. Apenas uma delas levou o Oscar para casa: Kathryn Bigelow. ( Veja a lista completa dos indicados ao Oscar 2021 )

Depois de seis anos de um processo interior rigoroso com a meta de tornar seu corpo votante mais diverso, hoje 31% dos membros da Academia são mulheres. Não por acaso, mas como resultado de uma série de crises sociais e éticas na indústria audiovisual, mais mulheres estão ocupando a cadeira de diretor nos projetos de cinema e TV. Segundo o Centro para os Estudos da Mulher no Cinema e na Televisão, 21% dos filmes mais bem-sucedidos na bilheteria em 2020 tiveram mulheres em postos-chave, da direção à montagem, do roteiro à fotografia.

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Duas destas mulheres, pela primeira vez na história do Oscar, estão indicadas à disputada categoria de melhor direção: a britânica Emerald Fennell, por “Bela vingança”, que ainda recebeu indicações para melhor roteiro (também de Fennell), melhor montagem, melhor atriz (para Carey Mulligan), e melhor filme ; e a chinesa residente nos Estados Unidos Chloé Zhao, por “Nomadland”, concorrendo igualmente para melhor roteiro adaptado e melhor montagem (também para Zhao), além de melhor fotografia, melhor atriz (para Frances McDormand) e melhor filme.

Fennell e Zhao têm idades próximas — 34 anos para Fennel, 39 para Zhao. Fennel, filha de um joalheiro de Londres (daí o nome Emerald) começou como atriz (“Anna Karenina”, “A garota dinamarquesa”, “The Crown”) e rapidamente fez carreira como roteirista (“Killing Eve”). “Bela vingança” é seu primeiro filme como realizadora.

Zhao nasceu em Pequim, filha de um industrial, e aos 19 anos decidiu estudar nos EUA, primeiro Ciência Política, depois Produção para Cinema. Seus dois primeiros filmes, “Songs my brothers taught me” e “Domando o destino”, focavam na vida no Oeste americano, e receberam prêmios em festivais, inclusive o renomado Sundance. “Nomadland”, seu terceiro longa, ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2020.

A seguir, elas falam sobre sua trajetória ao GLOBO.

Emerald Fennell

'Quis abordar a cultura da sedução com ironia pesada’, diz a roteirista e diretora de 'Bela vingança'
Emerald Fennell, diretora de 'Bela vingança' Foto: RICH POLK / Getty Images via AFP
Emerald Fennell, diretora de 'Bela vingança' Foto: RICH POLK / Getty Images via AFP

De onde veio a inspiração para “Bela vingança”?

Em primeiro lugar, devo dizer que este é um assunto muito delicado e não quero entrar em detalhes. Posso dizer que, como uma mulher crescendo nos anos 90, tudo o que abordo no filme era tido como absolutamente normal e permitido. Nos filmes de Hollywood e nas séries de TV, isso era visto como uma comédia: fazer a mulher ficar bêbada numa festa, num bar, fazer com que ela fique “à vontade” ( ela faz o sinal de aspas ), para depois ela acordar sem saber onde estava e o que aconteceu, e fazer a “caminhada da vergonha” de volta para casa. Isso era o coração das comédias. Era para fazer as pessoas na plateia rirem, como se fosse a coisa mais normal. É sinistro e insidioso, porque pessoas que se consideram boas acham que nada disso é ruim, que os corpos das mulheres estão aí para isso mesmo. Me interesso por esse processo, essa questão, os modos como a sociedade normaliza esse tipo de coisa.

Seu filme deu esse recado integralmente, como você queria?

Eu queria, acima de tudo, que meu filme fosse verdadeiro para mim, e honesto no modo como ele confronta o trauma que vem da cultura na qual eu cresci. Eu quis abordar a chamada cultura da “sedução” ( faz o sinal de aspas ) com uma ironia pesada. Eu quis abordar algo extremamente violento e cruel que é levado como uma brincadeira, uma piada mesmo, e quis que pessoas que se acham boas e corretas pudessem considerar os danos profundos que isso traz. Ao mesmo tempo, meu filme é sobre perdão e redenção, e o que é preciso para chegar até o perdão e a redenção. A maior parte dos temas do meu filme é de coisas internas. Espero que ele tenha comunicado tudo isso.

Carey Mulligan foi uma escolha fácil para você?

Facílima! ( Ela ri muito. )

E como foi a escolha dos atores para os vários personagens masculinos?

Muitos deles têm uma base na comédia, e em geral são esses os mais dispostos para enfrentar um desafio. Eu não queria galãs com uma aura de vilões sexy. Eu queria que eles encarnassem homens muito vulneráveis, porque todos os personagens masculinos são fracos e egoístas. Os atores que escolhi entenderam logo e ficaram muito à vontade com as características desses personagens. E colocar num filme atores que a plateia conhece como comediantes leva a refletir sobre como as aparências enganam.

Qual foi sua reação com a recepção do filme e como ele se destacou na temporada de prêmios?

É incrível! Mas acima de tudo me sinto o receptáculo do trabalho de mulheres que abriram caminhos por anos e décadas. Só lamento que essas possibilidades, incluindo a possibilidade de ter um filme como o meu financiado sem problemas, não vieram mais cedo.

Chloé Zhao

'A busca por si mesma é algo que eu sinto e compreendo’, diz a roteirista, diretora e produtora de 'Nomadland'
A diretora chinesa Chloe Zhao, diretora de 'Nomadland' Foto: CHARLY TRIBALLEAU / AFP
A diretora chinesa Chloe Zhao, diretora de 'Nomadland' Foto: CHARLY TRIBALLEAU / AFP

Como começou o projeto de “Nomadland”?

Com um livro escrito por Jessica Bruder, uma obra jornalística que analisa o movimento da vida voluntariamente nômade nos Estados Unidos. Um amigo meu, Peter Spears, que também é produtor, me mandou o livro e me perguntou se devíamos licenciar a obra. Eu respondi: “Por que não?” E, no momento em que comecei a ler, fiquei fisgada.

O que a atraiu dessa maneira?

Eu imediatamente notei uma ligação forte, muito pessoal, com a narrativa. A busca incessante de um novo horizonte é um elemento essencial na construção dos Estados Unidos. Faz parte dos ossos deste país. No meu caso, de um modo muito pessoal, a busca de algo que não se pode descrever, a busca por si mesma, é algo que eu sinto e compreendo. Este é o legado da estrada. A pessoa sabe que, no momento em que cair na estrada, ela já não é a mesma pessoa.

Ao mesmo tempo, é uma vida muito dura, especialmente para pessoas de mais idade...

Não sou uma pessoa muito política, mas fico muito à vontade para dizer que o modo como os idosos são tratados neste país é uma vergonha. O país mais poderoso do mundo trata mal seus cidadãos, homens e mulheres, pessoas nos 60, 70, 80, 90 anos, que trabalharam a vida inteira, alguns serviram nas Forças Armadas e agora dependem de trocados de pensão para se sustentar. A pandemia mostrou como o governo vê essas pessoas como descartáveis. Para mim, isso tudo é indescritível. Vim de uma cultura onde os mais velhos são um tesouro porque eles guardam a sabedoria de terem vivido e aprendido, e assim compartilham o que aprenderam com as novas gerações. Eles são tratados como a parte mais importante da sociedade. É uma vergonha que a sociedade capitalista ocidental tenha esquecido de tudo isso.

Sua opção pelo cinema foi bem recebida pela família?

Eu sempre fui meio rebelde. Fazer cinema sendo uma mulher não é uma coisa muito comum numa família chinesa. Nunca fui uma boa estudante, mas ao mesmo tempo eu não era descolada o bastante para ser uma garota malvada. Eu sempre fui mais uma nerd.

O que fez você seguir para o cinema?

A primeira semente foi Wong Kar-wai. “Felizes juntos” (1997) mudou minha vida. Eu fiquei enlouquecida na primeira vez que vi o filme. Eu imediatamente quis aquilo, queria fazer aquilo. Logo depois me apaixonei por Terrence Malick, o poder da imagem, a filosofia de fazer cinema. E, como pessoa, as questões que ele levanta como realizador e os elementos com os quais constrói um mundo na tela. Sem eles, eu não seria quem eu sou hoje.