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Cultura Celina

Artistas queer reinventam o pop-rap brasileiro com canções sobre gênero e religião

Nomes como Bixarte, Ventura Profana, Jup do Bairro, Guigo e Hiran exploram as várias facetas da questão LGBTQIA+ em seus lançamentos
Bixarte (à esq.), Ventura Profana e Jup do Bairro: o novo pop-rap queer Foto: Montagem de fotos de divulgação
Bixarte (à esq.), Ventura Profana e Jup do Bairro: o novo pop-rap queer Foto: Montagem de fotos de divulgação

RIO - Vencedora do Slam Cúir — competição de poesia falada que reuniu 15 artistas LGBTQIA+ como parte da programação da Festa Literária das Periferias (Flup) —, a rapper trans paraibana Bianca Manicongo, a Bixarte, de 19 anos, não teve muito tempo para deitar sobre os louros. Dia 25, ela lança a primeira de duas partes — o “primeiro ato”, como chama — de seu segundo álbum, bombasticamente intitulado de “Traviarcado”. O segundo ato sai só em março.

— Foi uma honra batalhar com os gigantes da poesia falada. Ganhar essa batalha, para mim, significa ocupação e ressignificação do meu corpo travesti. A Paraíba é muito coronelista ainda, são muitos homens regendo o estado, e inclusive o hip hop. Comecei a entrar nas batalhas de rap por não me ver nesses espaços. Não via uma mulher, que dirá uma mulher trans ou travesti — diz Bianca.

Mas Bixarte não está sozinha nessa. Depois de um movimento inicial que projetou nomes como Pabllo Vittar , Liniker e os Caramelows , Linn da Quebrada , Gloria Groove , Majur , Lia Clark e Aretuza Lovi, nos últimos meses o pop brasileiro pôs em evidência uma nova fornada de artistas LGBTQIA+, desta vez mais centrada no rap e mais preocupada em defender questões não só de gênero e de sexualidade, mas também de raça, religião e saúde. Muitas e muitos estão estreando com álbuns — ou prestes a estrear —, lançando uma música atrás da outra.

Questões do corpo e do espírito

A paulistana do Capão Redondo Jup do Bairro, de 27 anos, se destacou no cenário do rap este ano com o EP “Corpo sem juízo”, de faixas sonoramente elaboradas nas quais ela desenvolve poeticamente suas inquietações com o sexo e a própria existência como trans negra e periférica.

Em ritmo de funk, com participações do Rico Dalasam e Linn da Quebrada, a sensual “All you need is love” é uma das músicas fortes do disco (“tanta coisa pra dizer, mas faltou vocabulário / o que eu sinto por você não tá no dicionário”), junto com “Pelo amor de Deize”, heavy metal sobre distúrbios psicológicos dividido com a consagrada MC carioca de funk Deize Tigrona.

— Nas periferias, a depressão ainda é muito vista como uma doença de rico, uma frescura, e quando a Deize vem falando aquilo, é muito potente — acredita Jup, que este mês participa como palestrante do Festival Mix Brasil e para quem a representatividade normalmente associada ao seu trabalho “é uma faca de dois gumes”. — Apesar de a representatividade apresentar diversas possibilidades, ela também pode deixar a pessoa estática e sem contradições. Sinceramente, eu cansei de trabalhar com verdades absolutas. Mais do que oferecer explanações, acho que o que eu consegui com esse novo trabalho foi levantar novas interrogações.

'Nome de travesti tem poder'

Mas ninguém chega com mais enigmas do que a baiana, trans, negra, artista plástica e pastora batista missionária Ventura Profana, que em julho lançou o EP “Traquejos pentecostais para matar o Senhor”, feito durante a quarentena com o DJ e produtor Podeserdesligado.

Associada pelos algoritmos do streaming a Bixarte, Jup do Bairro e outros artistas do rap queer brasileiro, ela mistura eletrônica de vanguarda, percussões africanas, soul music e letras que versam sobre questões de gênero, raça e religião, em faixas como “Homenzinho torto”, “Eu não vou morrer” e “Vitória” (na qual brada: “Nome de travesti tem poder!”).

— A partir de uma pesquisa sobre a multiplicação das igrejas neopentecostais nas últimas três décadas, comecei a propor outras possibilidades de congregações e percebi que as igrejas que mais cresciam eram as que mantinham ministérios de louvor com trabalhos musicais mais fortes — conta Ventura.

No dia 21, ela abre a exposição “Plantações de traveco, para a eternidade”, no Centro Cultural São Paulo.

— Meu desafio é promover a desdemonização de condutas que não sejam heteronormativas e que também não sejam brancas. Há uma grande problemática nesse meio ( pentecostal ) que, além de ser transfóbico, é super racista e misógino. É um paradoxo mesmo, porque ao mesmo tempo em que eu me sinto acolhida e que reconheço o amor, eu sou caracterizada o tempo todo como demônio.

Estética dark

Detalhe da capa do álbum "Lúcifer: o Evangelho segundo os meus demônios", do rapper Guigo (rap queer Brasil) Foto: Reprodução
Detalhe da capa do álbum "Lúcifer: o Evangelho segundo os meus demônios", do rapper Guigo (rap queer Brasil) Foto: Reprodução

Igualmente enigmático (e com potencial para ser visto como blasfemo) é o álbum “Lúcifer: O Evangelho segundo meus demônios”, lançado em agosto por Guigo, integrante do coletivo de rappers gays Quebrada Queer, formado também por Harlley, Murillo Zyess, Tchelo Gomez e Lucas Boombeat (que também se dedicaram em 2020 às carreiras solo).

Com uma capa que remete ao “Mechanical animals”, do shock rocker americano Marilyn Manson, “Lúcifer” reúne em sua composição sonora timbres eletrônicos, guitarras, dancehall e vaporwave em faixas como “Gospel” e “Pode ser cru”.

— Comecei a olhar pra tudo que estava em minha volta, e também a olhar pra dentro. Sempre fui visto como o bizarro, o estranho, a figura dark, e isso me machucava. Foi aí que resolvi abraçar isso, comprar essa ideia, e vendê-la da forma mais honesta possível — explica Guigo.

No ritmo do funk-bossa

Enquanto isso, chacoalhando funk, arrocha, rap e tudo mais em faixas com temática abertamente gay, o baiano Hiran chegou em julho com “Galinheiro”, seu segundo álbum, depois de “Tem mana no rap” (2018). A música que mais chama a atenção no disco para a sua voz melodiosa é o funk-bossa “Gosto de quero mais”, parceria com Tom Veloso, filho mais novo de Caetano:

— Antes, eu pensava muito no discurso, não tinha uma porta aberta para gente como eu fazer o que queria. Agora, eu quis falar sobre a minha vida no geral, sobre coisas humanas. Tenho fazer com que as pessoas me vejam para além do rapper queer, que eles só encaixam no festival quando tem espaço para isso.