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Cultura Celina

Da maternidade à luta contra o machismo, autobiografia mostra que Pagu ainda tem muito a dizer às mulheres

Texto escrito por Patricia Galvão em 1940 mostra que a condição feminina não é construída sem dor e dialoga com a atual geraçãode feministas
Autobiografia Precoce, escrita por Pagu em 1940 mostra que a condição feminina não é construída sem dor e dialoga com a atual geração de feministas Foto: Acervo Lúcia Teixeira/Centro Pagu Unisanta
Autobiografia Precoce, escrita por Pagu em 1940 mostra que a condição feminina não é construída sem dor e dialoga com a atual geração de feministas Foto: Acervo Lúcia Teixeira/Centro Pagu Unisanta

A palavra foi durante muito tempo um privilégio masculino. Logo ela, vital para o nascimento da democracia no espaço público grego, mas negada às mulheres de Atenas. Para ter a palavra, Amandine Aurore Lucile Dupin (uma baronesa!), recorreu ao pseudônimo George Sand, e Virginia Woolf afirmou que as mulheres deveriam ter uma renda e um teto para poderem desenvolver sua produção artística e intelectual, no hoje clássico "Um teto todo seu", de 1929.

Escritora, desenhista e militante política, Patricia Galvão, a Pagu, lutou pela palavra em um tempo em que ela era negada às mulheres. Felizmente, registrou sua trajetória em uma curta obra autobiográfica que deixa explícito o peso cotidiano da condição feminina em uma sociedade que silencia mulheres.

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A "Autobiografia precoce", que a Companhia das Letras acaba de lançar, foi escrita em 1940, depois de uma das 23 vezes que Pagu saiu da prisão. Em uma carta franca e íntima ao segundo marido, Geraldo Ferraz, ela reflete sobre a infância no bairro do Brás, em São Paulo, o casamento com o escritor Oswald de Andrade, a maternidade, a sexualidade reprimida, a busca por uma finalidade em sua vida e o mergulho intenso na militância comunista. Unindo todos esses temas está o preço físico e psíquico que pagou para ser sujeito da História, não mais um objeto.

Capa da 'Autobiografia Precoce'. Edição da Companhia das Letras é a primeira em que Pagu não é mediada ou apresentada por um homem Foto: Divulgação / Divulgação
Capa da 'Autobiografia Precoce'. Edição da Companhia das Letras é a primeira em que Pagu não é mediada ou apresentada por um homem Foto: Divulgação / Divulgação

Mas o que acontece quando uma mulher tem a palavra? Ao decidir escrever sua autobiografia, Pagu desloca a História oficial, aquela com H de "homem", e deixa no papel uma trajetória familiar a uma parcela das mulheres brasileiras. É importante ter sempre em mente que ela era uma mulher branca, que cresceu em uma bairro operário e frequentou a elite intelectual de São Paulo. Para alguém como Pagu, que iniciou a vida adulta no fim da década de 1920, não havia muitas opções além do casamento, da família e da obediência.

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Agindo contra essa ordem, Pagu conquistou a simpatia das colegas de colégio por sua insubordinação, iniciou um relacionamento aberto com Oswald de Andrade aos 19 anos e dedicou-se a desenvolver sua intelectualidade. "Nunca tinha podido ler, e esse prazer novo era ainda um outro motivo de vida", escreveu. Ao mesmo tempo, como a Emma Bovary de Flaubert, carregava dentro de si o ideal romântico ("Lembro minha submissão absoluta. Não ao homem. Ao amor") e uma pulsão de vida que precisava ser realizada ("Eu procurava. Sem saber o quê"). Na entrega à política, encontrou uma finalidade ("Lutar por isso valia a vida") e, mais uma vez, a crueldade da sociedade patriarcal. "Eu sempre fui vista como um sexo", escreveu.

Escritora, desenhista e militante política, Patricia Galvão, a Pagu, lutou pela palavra em um tempo em que ela era negada às mulheres. Felizmente, registrou sua trajetória em uma curta obra autobiográfica que deixa explícito o peso cotidiano da condição feminina em uma sociedade que silencia mulheres Foto: Acervo Lúcia Teixeira/Centro Pagu Unisanta
Escritora, desenhista e militante política, Patricia Galvão, a Pagu, lutou pela palavra em um tempo em que ela era negada às mulheres. Felizmente, registrou sua trajetória em uma curta obra autobiográfica que deixa explícito o peso cotidiano da condição feminina em uma sociedade que silencia mulheres Foto: Acervo Lúcia Teixeira/Centro Pagu Unisanta

Ela lembra não ter sido aceita em um hotel de Buenos Aires por ser uma mulher desacompanhada ("Me senti tão só"), e ter sido acolhida pelas irmãs de Luís Carlos Prestes. Conta a desilusão ao conhecer o escritor Jorge Luís Borges, que quis levá-la para a cama imediatamente ("Deram-me a impressão de um revolucionarismo convencionado à depravação"), e que foi assediada por parceiros de luta política. Do Partido Comunista recebeu ordem para conseguir informações, mesmo que precisasse usar o sexo para isso. "Acho que é exigir demais das mulheres revolucionárias. Não sou uma prostituta", protestou, para ouvir como resposta que isso não era exigido das revolucionárias. "Exige-se de você, que é excepcional". Ela foi ("Eu tinha consciência, sim, de que estava me prostituindo") para mais tarde reconhecer que sua entrega à luta política foi tamanha que "ia matando os resíduos da condição humana".

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Por mais intensa que tenha sido, a entrega não aconteceu sem olhar crítico. Na "Autobiografia precoce", Pagu denuncia a brutalidade da repressão policial durante a Era Vargas. Lembra que, caída no chão, depois que a polícia interrompeu um comício em Santos, sentiu as botas de um policial em seu pescoço ("Eu não podia mais respirar"), mas que foi seu companheiro de militância, Herculano, um homem negro, quem morreu com um tiro ao tentar salvá-la. Foi na década de 1930, mas poderia ser hoje. Indignada, escreve sobre o dia em que uma mãe foi obrigada a marchar com a bandeira do partido enquanto seu filho agonizava a poucos metros de distância. Por fim, afirma que prefere não "relatar os sofrimentos por que se passa numa prisão de mulheres".

E é justamente a expressão da condição feminina o ponto alto de "Autobiografia precoce". Pagu se tornou um mito, mas ao revelar tanto de si, mostra que a "mulher a frente de seu tempo" não foi construída sem dor. Experimentou sentimentos familiares a muitas mulheres ainda hoje: a certeza de que a gravidez e a família seriam uma forma de realização, para depois perceber que isso não bastava; a culpa materna por se distanciar do filho ; a necessidade constante de provar sua capacidade para que seu trabalho fosse aceito; e a falta de fé em si mesma, hoje chamada de "síndrome do impostor", ao decidir escrever um livro sobre a causa dos trabalhadores. "Não tinha nenhuma confiança nos meus dotes literários", escreveu sobre o romance "Parque Industrial", lançado em 1932.

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Quando uma mulher escreve em primeira pessoa, ela desloca a História, ampliando os seus significados. Pagu tomou a palavra e transformou o político em pessoal, algo que a atual geração de feministas também faz, publicando relatos em primeira pessoa nas redes sociais. O que são hashtags como #primeiroassedio e #metoo se não autobiografias precoces, mobilizadoras do intenso debate sobre igualdade de gênero que tem acontecido nas sociedades ocidentais?

Esta edição de "Autobiografia Precoce" é a primeira em que Pagu não é mediada, ou apresentada, por um homem, e também a primeira que respeita o título escolhido por ela. Pagu toma seu lugar na ágora e mostra, em 140 páginas, que não existe democracia sem que as mulheres tenham a palavra.

AUTOBIOGRAFIA PRECOCE

Autora: Pagu. Editora : Companhia das Letras. Páginas : 144.
Preço : R$ 59,90. Cotação: Bom.