Cultura Celina

Fran Demétrio: 'O segundo sexo contribuiu para a superação social e política da ideia essencialista sobre o que é ser mulher'

A convite do projeto Celina, pós-doutora em Filosofia escreve carta à autora francesa, refletindo sobre a atualidade de"O segundo Sexo" 70 anos depois de seu lançamento
Fran Demétrio, transfeminista negra e professora adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) Foto: Arte de Ana Luiza Costa sobre foto de arquivo
Fran Demétrio, transfeminista negra e professora adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) Foto: Arte de Ana Luiza Costa sobre foto de arquivo

Caríssima Simone B.,

Venho por meio desta carta revelar-te o quão importante foi a construção de uma epistemologia feminista desde sua obra "O segundo sexo', a qual contribuiu, sobremaneira, para a superação social e política da ideia essencialista sobre o que é ser mulher e quem são as mulheres, e de mostrar a possibilidade de construção de um feminismo para além da teoria e movimento político, já que no seu entendimento organizações políticas reivindicam suas pautas e formulam suas questões a partir de políticas identitárias.

Sem dúvida, a sua máxima filosófica "não se nasce mulher, torna-se mulher" ovulou horizontes epistemológicos importantes, não para mostrar que há uma diferença essencial entre homens e mulheres, mas reconhecer como os aspectos socioculturais, e também corpóreos (por isso, o uso da expressão "ovular/ovulou"), da feminilidade, podem influenciar nos sentimentos morais e no campo concreto das possibilidades práticas. Talvez seja essa uma de suas principais contribuições ao campo de estudo denominado de filosofia moral feminista.

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Ouso acrescentar que a sua epistemologia projetada na obra "O segundo sexo” contribuiu para a filosofia, e nesse caso, para algumas filósofas feministas, que se debruçaram sobre seus escritos, afirmarem a sua tese de que o gênero na filosofia, falado desde uma perspectiva universal, deixa de considerar as interferências culturais, sociais e políticas nas decisões morais dos sujeitos. É, portanto, desde essa perspectiva que outras filósofas e pensadoras feministas - e aqui eu incluo e destaco algumas transfeministas - dos estudos sociais de gênero e sexualidade, e ainda àquelas mulheres que reivindicam uma epistemologia feminista militante (ou seja, que está em outros campos de práticas para além ou que escapam às teorias acadêmicas) têm questionado a ideia de "mulher universal" no processo de construção de uma epistemologia feminista, também universal. Sabe-se que por esse prisma universalizante, sem perder os contextos de vista, fala-se de uma mulher branca, de classe nobre, letrada e de estética e ética eurocentradas.

Na mesma linha, tem-se um feminismo marcadamente branco, elitista, liberal e euro-etno-estético-epistêmico-centrado. Esse modelo de pensar o feminismo tem sido questionado a partir de pensadoras feministas (que aqui eu chamaria geo-étnico-estético-politicamente de periféricas, como as feministas negras, indígenas, transgêneras, as putas, àquelas com deficiência física e as interseccionais) atravessadas por diferentes experiências de opressão (interseccionalidade), que não apenas a condição de ser mulher (subalterna ao homem e atrelada ao reconhecimento de padrões comuns de vivência a partir da noção "mulher"), mas às várias possibilidades sociais de conformação de mulheridades marcadas pelas estruturas estruturantes que organizam os corpos e as bionecropolíticas (determinação macropolítica dos regimes de poder e controle sobre micropolíticas da vida e da morte) quais sejam a raça, a classe e a sexualidade entre outras, e como o gênero, à luz de algumas teóricas feministas queer , como Judith Butler, pode ser pensado como uma práxis discursiva permanente contra o sistema cisheteropatriarcal.

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Para finalizar essa carta contemplativa Beauvoir, se hoje eu posso ser uma mulher, e sou uma mulher transgênera, mesmo que nos escritos de sua obra "O segundo sexo", essa forma de feminilidade (repito: sem perder o contexto de vista) e o feminismo pluriepistêmico ainda não tenham aparecido como possíveis (e tampouco ousaria afirmar "o ser trans" como "o terceiro sexo", pois não daria conta), é grande e deveras importante o legado epistemológico feminista para a ética dos estudos de gênero na filosofia moral, que mais recentemente, a partir de movimentos  (trans)feministas e de elaboração e afirmação de uma epistemologia trans em curso, têm trans-tornado as teorias de gênero por um prisma interseccional e decolonial. A partir desse ponto, Simone, transmutam-se ritos e escritos epistêmicos para pensar uma filosofia feminista interseccional e decolonial na qual, "O segundo sexo”, o gênero não nasce, ele torna-se.

Fran Demétrio é transfeminista negra e professora adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)