Exclusivo para Assinantes
Cultura Celina

'Meu livro é uma carta de amor a um país que está morrendo', diz escritora venezuelana que estará na Flip

"Noite em Caracas", romance de Karina Sainz Borgo, teve direitos vendidos para mais de 20 países
A escritora venezuelana Karina Sainz Borgo estará na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) ao lado do tradutor e editor carioca Miguel Del Castillo em mesa sobre "lutos" Foto: Divulgação
A escritora venezuelana Karina Sainz Borgo estará na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) ao lado do tradutor e editor carioca Miguel Del Castillo em mesa sobre "lutos" Foto: Divulgação

RIO - Ela nunca imaginou que seu primeiro romance coincidiria com o ano mais difícil já vivido pela Venezuela desde que a disputa entre chavistas e opositores dominou o cenário político local. O mesmo ano em que muitos acreditaram — e ainda acreditam — que o país conseguirá sair do que ela define como “um governo de assassinos”. Foi uma coincidência inesperada e que gerou certa angústia, diz a jornalista e escritora Karina Sainz Borgo , por telefone, de Madri, onde mora desde 2006.

“Noite em Caracas” (o título em espanhol é “La hija de la española”) virou best-seller na Espanha, teve cinco reimpressões e os direitos vendidos para mais de 20 países. Graças a ele, Karina estará na próxima Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontece de 10 a 14 de julho. Vai falar sobre “lutos”, no dia 12, ao lado do escritor, tradutor e editor carioca Miguel Del Castillo. Karina é uma das 18 autoras que estarão nesta edição da Flip, marcadamente feminina.

SIGA CELINA NO INSTAGRAM

Nascida em Caracas, em 1982, ela começou a escrever no venezuelano “El Nacional”. Em 2008, lançou dois livros de crônicas, “Tráfico Guaire” e “Caracas hip-hop” e seguiu colaborando com jornais pelo mundo.

— “Noite em Caracas” é uma carta de amor a um país que está morrendo — afirma a escritora, que se emocionou durante vários momentos da conversa. — Uma carta que escrevi como recurso de uma pessoa covarde que partiu. Não melhora nada, mas me permite defender um pouco do que nos tiraram.

Ficção dói menos

Karina reconhece que sente culpa, indignação e tristeza. Mas também se diz profundamente comprometida com seu país e seus compatriotas. Esclarece que este é um romance “político, mas não politizado”. Mas faz questão de deixar bem clara sua opinião sobre os que atualmente ocupam o Palácio de Miraflores. Paralelamente, também questiona os opositores e lembra que “as democracias que não se defendem são democracias fracas. Nós não soubemos defender a nossa”.

— Quando Hugo Chávez chegou ao poder parecia uma figura engraçada, empática, mas era muito autoritário. Ele semeou a divisão e desperdiçou a oportunidade de construir. Chávez é nossa grande sepultura nacional, foi nosso grande coveiro — diz.

A partir da protagonista, Adelaida Falcón, a escritora apresenta ao leitor elementos da realidade venezuelana contemporânea. A decadência da sociedade, da economia e do ser humano. Adelaida vive num país em ruínas, perde a mãe, sua maior referência e companhia, vê seu apartamento ser invadido, conhece um jovem militante que já passou pelos calabouços do governo e percorre um longo caminho até o exílio na Espanha.

LEIA TAMBÉM: trechos inéditos de cartas de Anne Frank, que completaria 90 anos em 2019

O livro fala sobre os maiores dramas que vivem os venezuelanos: a violência, a perseguição sangrenta por órgãos estatais, a escassez generalizada (inclusive de luz e água), o medo e a imigração forçada.

— Quis contar a história do sobrevivente e falar sobre a culpa do sobrevivente. Falar através da ficção dói um pouco menos e permite chegar aos quartos, às cozinhas, ao espaço íntimo das pessoas. É uma ficção sustentada em dados reais — conta Karina.

Para quem conhece a Venezuela e sua História recente, o livro é uma ficção bastante real. São mencionados mecanismos de repressão verdadeiros, como as ações do Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin) e seus centros de detenção e tortura, entre La Tumba, onde estão presos e são torturados opositores do governo de Nicolás Maduro. É por lá que passa o jovem Santiago, um dos personagens que se encontram com a protagonista.

— O caso de Santiago é bastante real, existem muitos Santiagos na Venezuela. Não usei nomes reais para que não pudessem dizer que o livro é uma denúncia — diz a escritora.

Desespero e pavor são sentimentos que aparecem em vários momentos do livro. Num desses momentos, Adelaida encontra uma vizinha morta. Por temor de ser acusada de envolvimento, acaba atirando o cadáver pela janela.

— São coisas que se fazem para sobreviver num país como o meu — explica.

A escritora visitou seu país pela última vez entre o fim de 2012 e começo de 2013. Hugo Chávez ainda estava vivo, e Karina não se encontrou em sua própria terra. Com certa amargura, reconhece que, naquele momento, se sentia mais acolhida na Espanha, país para o qual rumaram milhares de venezuelanos nos últimos anos. Fazendo o caminho inverso de seus avós, jovens venezuelanos aproveitaram a cidadania espanhola para tentar a sorte na Europa. A ruptura é grande, lamenta Karina, que durante muito tempo tinha enorme dificuldade cada vez que lhe pediam que escrevesse sobre a Venezuela.

— Este é um romance para as vítimas, para que elas se sintam acompanhadas — afirma a escritora. — Os que se vão se sentem mal, li muitos livros sobre as guerras na Europa, e o que nós vivemos é bem parecido. São processos traumáticos. O mais complicado é matar quem você era e se reinventar.

LEIA TAMBÉM: México descobre o que pode ser o único registro da voz da pintora Frida Kahlo. Ouça o áudio

Mas o livro também fala sobre belezas venezuelanas, tradições, gírias, paisagens e músicas. Porque é uma carta de amor, e cartas de amor também falam sobre coisas bonitas.

A todo momento o livro remete a situações que têm acontecido no país. Ela escreve, por exemplo, que muitos perderam o direito de enterrar seus mortos. E aconteceu por estes dias com o deputado Richard Blanco. Após ficar um tempo na embaixada argentina em Caracas, ele fugiu para a Colômbia e, ao chegar, soube que sua mãe havia morrido.

— Nossos mortos nos matam de tristeza — desabafa Karina. — Para atravessar qualquer luto é preciso, antes, saber a verdade.