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Cultura Celina

'Não dá para ser antirracista só para ganhar like', diz cantora Bia Ferreira

Neste domingo (30), artista elogiada por Caeano Veloso faz baile virtual da Igreja Lesbiteriana, que celebra existência da população negra e LGBTQI+
Bia Ferreira: 'Para ser mulher preta na música brasileira tem que mostrar a bunda e rebolar' Foto: Gabriella Maria/@afroafeto
Bia Ferreira: 'Para ser mulher preta na música brasileira tem que mostrar a bunda e rebolar' Foto: Gabriella Maria/@afroafeto

Terceira de seis filhos de uma regente de coral e um ex-pastor evangélico que viajava o Brasil pregando, Bia Ferreira sempre ouviu dizerem que ela seguiria os passos do pai por causa de sua oratória. A cantora e compositora mineira de 27 anos até abriu a própria "paróquia", a "Igreja Lesbiteriana", um baile-culto para mulheres (neste domingo, 30, tem edição virtual, às 16h, com transmissão direta da Fundição Progresso pela plataforma de streaming da Eventim). Mas, como se vê, a palavra que decidiu espalhar não foi a do Evangelho e sim a de empoderamento da população LGBTQI+ e negra (neste sábado, 29, é o Dia da Visibilidade Lésbica ).

E a mensagem de Bia não só viralizou com a canção "Cota não é esmola" (o vídeo dela cantando a música tem mais de 10 milhões de acessos no canal do Sofar Latin America, no YouTube), como se tornou objeto de estudo. A composição é leitura obrigatória para o vestibular da UNB, e já foi citada em provas da UFMG e UFPR. Agora, também estará na trilha sonora da série "Na minha pele", do Globoplay.

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As reações à arte de Bia, que roubou a cena no musical “Elza”, nem sempre são positivas. Sua música "Diga não" ("diga não à polícia racista a música/  Diga não a essa militarização") já lhe rendeu cacetadas de policiais que a reconheceram na rua como a autora da canção. Uma vez, foi hostilizada por jovens vestidos com a camisa do Brasil ao receber com beijo a namorada no aeroporto.

Ela segue firme. Lançou anteontem, com a companheira Doralyce, com quem é casada, o clipe da composição “Acenda a luz”. O video é uma ode ao amor das duas, que Caetano Veloso já elogiou: “Bia Ferreira sozinha já é coisa demais: violão percussivo e harmônio hipersuingado, voz afinada e mutante, dicção e atitude sempre convincentes e expressivas. E quando canta com Doralyce é só amor”, escreveu ele, no Instagram. Preta Gil é outra fã (“Bia é uma voz de coragem, força e luta, que coloca o dedo na ferida” , diz). Nesta conversa, a cantora, que já ocupou o Instagram do ator Bruno Gagliasso, diz que não basta se declarar antirracista, é preciso ter atitudes concretas.

Há o que se comemorar hoje, Dia Nacional da Visibilidade Lésbica?

A gente vive no país que mais mata a população LGBTQI+ no mundo. Falando de mulher lésbica: quando ela procura ocupar o lugar de protagonismo, exigem que passe sem que o seu corpo seja percebido. Porque as pessoas não sabem lidar com uma mulher fora daquela expressão que conhecem. Chego na padaria e me perguntam: "quantos pães o senhor vai querer?", sendo que sou visivelmente uma mulher. Falando de música brasileira: há mulher preta lésbica, como dona Leci Brandão, Sandra de Sá ou Martnália, mas não com o mesmo protagonismo de Cássia Eller, Simone ou Ana Carolina. É um lugar difícil de ser ocupado porque o corpo da mulher preta é hipersexualizado.

Para ser mulher preta na música brasileira tem que mostrar a bunda e rebolar. Existe um estereótipo do nosso corpo construído desde quando o primeiro navio chegou de África. Essa exploração faz com que o mercado só absorva certos tipos. A gente vê um monte de branca que nem canta. Enquanto às pretinhas não basta cantar. E ela também não pode se manifestar politicamente. Tem que ser a única preta que deu certo. O mercado não quer que tenha cinco pretas sapatonas no line-up de um festival, mas que disputemos a única vaga para poderem dizer que há diversidade. A gente não quer ser cota nos espaços. No Baile da Igreja Lesbiteriana, propomos que sapatões pretas desfrutem e não disputem.

Qual a importância de sua música ser estudada em universidades num país que conta sua História a partir da ótica do colonizador?

Como digo na música: "Existe muita coisa que não te disseram na escola/ Cota não é esmola". A história do Brasil só é contada pelo olhar do colonizador. Tudo que aprendi sobre o povo preto não foi na escola, mas na (ONG) Uniafro, nos movimentos sociais e estudantis que fui incluída. Entendendo o meu corpo como o ser político de uma mulher preta e tive necessidade de contar aos meus. Porque essas coisas ainda são passadas num "academiquês" que as pessoas de onde venho não entendem.

Quis usar minha música para explicar de forma didática assuntos que fazem diferença para a emancipação de pensamentos e atitudes do povo preto no Brasil. Meus pais, hoje, são professores da rede pública de ensino. Um dia, estavam num congresso onde usaram o vídeo de "Cota não é esmola". Vê-los reconhecendo meu trabalho nesse lugar foi glorioso. Porque eles são cristãos, evangélicos, e não concordam com o que eu falo. Luto contra o cristianismo que eles acreditam. Por isso, abri minha própria igreja, um espaço de acolhimento para celebrar a existência de pessoas pretas e LGBTQI+.

Você diz que o senso de urgência sobre o racismo precisar habitar as pessoas brancas. Qual é o nosso papel na luta antirracista?

O racismo é um problema dos brancos, e isso precisa bater no senso crítico de vocês, porque é urgente que a gente pare de morrer. Vocês não têm culpa, mas precisam reparar o que seus antepassados fizeram. Convivem e sobrevivem da herança de privilégios que o racismo proporciona. O mesmo racismo que te privilegia, me mata. O branco tem que reconhecer e reparar.

Essa reparação tem a ver com dinheiro, porque vivemos num mundo capitalista em que poder é dinheiro. Enquanto ele não circular na mão das pessoas pretas e indígenas, a reparação não está feita. É preciso abrir mãos dos privilégios e fomentar ideias de pessoas pretas, abrir mão do protagonismo para colocar um preto nesse lugar. Se o menino da favela sonha em ser jogador de futebol é por que é o único lugar em que ele vê homens pretos bem-sucedidos.

O que passa pela cabeça quando uma branca como eu te entrevista?

Acho massa que você pare o seu tempo para me ouvir, fazer com que a minha voz ecoe e que eu possa falar com quem talvez não alcançasse. Mas também me faz pensar: quantas jornalistas pretas têm no seu jornal?

Você diz que seu som é Música de Mulher Preta. Defina:

É qualquer conteúdo que uma mulher preta se propõe a falar em prol do enriquecimento intelectual de pessoas pretas. Sempre que ela fala o que sente e expõe sua arte, já é um corpo político. Dizem que dona Elza Soares é a mulher do milênio agora, mas ela é desde os 13 anos, quando cantou para o seu Ary ( Barroso, num programa de calouros ). Ela sempre fez música de mulher preta, assim como Zezé Motta. É a gente dar nome e valor para essas mulheres, que construíram a música de mulher preta: Alcione, dona Ivone Lara, Leci Brandão, Mart'nália, Sandra de Sá.

Pessoas brancas estão postando no Instagram uma foto delas com a frase "sou um racista em desconstrução". Qual é a sua opinião?

Não dá para ser antirracista só para ganhar like. Tem que ser porque ser racista é ruim, escroto. Pessoas brancas não devem se afirmar antirracistas, porque o que define não é o que se fala, são as atitudes. Faça e não fale nada, porque é sua obrigação reparar. O primeiro passo para ser antirracista é reconhecer e correr atrás do prejuízo. E isso tem que vir da pessoa, não é um preto que vai dar aula. Acredito é em pessoas brancas discutindo a sua branquitude , o racismo, e educando outros brancos para que parem de fomentar essa política genocida.

Dias atrás, as principais ligas esportivas dos Estados Unidos pararam contra o racismo. O que significa?

Que aqueles atletas se negaram a entrar na quadra têm consciência de quem eles são e do povo que defendem. Fica aí a cobrança para que atletas pretos brasileiros de grande alcance se posicionem. Tem jogador preto que nem se considera preto. Há atleta que, quando rola uma chacina da população preta, posta foto perguntando se a chuteira é bonita. Esse movimento vem também para alertar sobre qual tipo de política que os fez ter acesso ao esporte lá na favela onde moravam. Sei a diferença que políticas públicas fazem na vida de uma pessoa preta, pobre e periférica.

“Estou aqui porque muitas mulheres sapatonas nos anos 1950, 1960 e 1970 precisaram se silenciar para não serem mortas”

Bia Ferreira
cantora

Minha geração cresceu com a possibilidade de os pais terem casa própria, carro, poder viajar de avião, acham que isso é regra. Desde quando criaram essa pseudodemocracia, nunca havia se pensado na inclusão do corpo pobre e preto. Porque existia lei que proibia pessoas pretas de terem terra, de irem à escola, de praticar sua cultura e sua fé. Nossa presença no espaço público nunca foi pensada.

Estou aqui porque muitas mulheres sapatonas nos anos 1950, 1960 e 1970 precisaram se silenciar para não serem mortas. Mas mesmo assim construíram conteúdo intelectual para que tivéssemos acesso a esse conhecimento e pudéssemos falar hoje. Quando falo "sou sapatão" é por todas as artistas pretas brasileiras que não puderam falar sobre isso para não serem canceladas. Muitas nunca se assumiram, outras estão se assumindo agora porque agora o pink money está rolando. Até quem não é LGBTQI+ está lucrando com isso. Você vai nas festas e vê um monte de hétero tocando. E o cachê deles é enorme. Na hora de contratar Bia Ferreira, oferecem o mínimo.

O Atlas da Violência divulgou pesquisa que revela que de 2008 a 2018 a taxa de homicídio de negros no país subiu 11,5%, enquanto a do restante da população teve queda de 12,9%. O que esses dados dizem sobre a sociedade?

Quando pensamos nesse tipo de estatística, entendemos que a necropolítica que pauta o Brasil desde sempre é contra nós. E aí é dever das pessoas brancas garantirem que isso pare de acontecer, se coloquem na frente dos nossos corpos para que a gente pare de morrer. Se numa dessas várias manifestações nos Estados Unidos aparecer um supremacista branco fuzilando todo mundo, ele vai ter mais dificuldade em abrir fogo quando vir pessoas parecidas com ele na linha de frente.

“Quero que as meninas pretas olhem para mim e vejam o que eu vejo quando olho dona Leci Brandão.”

Bia Ferreira
cantora

A polícia também não bate em gente branca. A gente sabe como é diferente a ação policial em Alphaville e nas quebradas. Quando tem branco, as pessoas defendem a vida daquela pessoa, e ela tem que usar seu privilégio para proteger a vida das pessoas pretas, indígenas, LGBTQI+. Morre uma travesti a cada 24 horas no Brasil. E isso porque somos o país que mais consome pornô desse gênero no Brasil.

Luto para que aquela menina adolescente sapatão que toca um violãozinho e sonha saiba que pode chegar lá sem abrir mão dos seus valores, sendo coerente com o que acredita e sem precisar se expor. Quero que as meninas pretas olhem para mim e vejam o que eu vejo quando olho dona Leci Brandão.

O que na base da sua criação te fez ter a consciência política e social que você tem? Havia letramento racial na sua casa?

Minha mãe sempre falou: "você é preta, tem que ser a melhor aluna da turma, a mais bem arrumada a mais educada e tem que passar creme na perna". Ela mandava eu decorar meu RG, não correr na rua e não andar descalça. Mas nunca vi o cabelo natural da minha mãe. Porque ela não suportaria ouvir o que duas modelos ouviram de um cabeleireiro racista ( se refere a um vídeo recente em que um cabeleireiro fala faz o seguinte comentário enquanto pega no cabelo de uma modelo negra: "Filhote do patrão, né? patrão comeu aqui e virou isso" ). Eu tive crise de choro e ansiedade vendo esse vídeo.

Tive a educação racial de sobrevivência que meu avô deu à minha mãe. Em 1930, ele trabalhava numa fazenda em condições análogas à escravidão e aprendeu a ler com 40 anos. Minha mãe sempre achou que Deus nos protegeria do racismo. Mas o Deus em que ela acredita é um Jesus branco que, dificilmente, protegeria a vida de um pretinho.