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Cultura Celina

Romance inédito de Simone de Beauvoir recorda amizade que foi fundamental para sua obra

Em 'As inseparáveis', a autora de 'O segundo sexo' narra a história trágica da amiga Zaza Lacoin, proibida pela família de elite e conservadora de se casar com o filósofo Maurice Merleau-Ponty
Zaza Lacoin e Simone de Beauvoir em Gagnepan em setembro de 1928 Foto: Association Élisabeth Lacoin / LHerne
Zaza Lacoin e Simone de Beauvoir em Gagnepan em setembro de 1928 Foto: Association Élisabeth Lacoin / LHerne

SÃO PAULO — Em 1954, após a publicação de “Os mandarins”, romance sobre a intelectualidade francesa que venceria o prestigioso Prêmio Goncourt, Simone de Beauvoir (1908-1986) resolveu voltar a um episódio de sua juventude que havia tempos ela lutava para transformar em ficção. Sua amiga de infância Élisabeth Lacoin, a Zaza, filha de uma família burguesa e profundamente católica, morrera de repente, em novembro de 1929, um mês antes de completar 22 anos.

Segundo os médicos, a causa da morte foi uma encefalite viral. Beauvoir discordava. Para ela, a morte de Zaza, fora um “crime espiritualista”. A amiga, que desde cedo lhe despertara um sentimento de quase veneração, pelo seu destemor, teria morrido porque não lhe restavam mais forças para lutar contra o conservadorismo da família, que proibira o relacionamento dela com um jovem sem muito dinheiro, mas cheio de pretensões filosóficas chamado Maurice Merleau-Ponty (1908-1961).

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A convivência e a morte da amiga idolatrada influenciaram diretamente o pensamento e a obra de Beauvoir, uma das figuras mais relevantes do movimento feminista . A tragédia de Zaza contribuiu para aprofundar, na autora do clássico “O segundo sexo”, a consciência da imensa opressão das mulheres e da hipocrisia de uma sociedade que ignorava suas vozes e seus desejos. A história dessa apaixonante e decisiva amizade firmada desde os bancos escolares chega agora aos leitores brasileiros no romance inédito “As inseparáveis”.

Simone de Beauvoir é autora de 'O segundo sexo', entre outras obras Foto: Infoglobo
Simone de Beauvoir é autora de 'O segundo sexo', entre outras obras Foto: Infoglobo

Na obra autobiográfica, Beauvoir mudou os nomes dos personagens: Zaza virou Andrée Gallard e Merleau-Ponty, Pascal Blondell. Para si própria, Beauvoir escolheu o nome de Sylvie Lepage. Ela escreveu, mas preferiu deixar o romance na gaveta, e narrar sua amizade com Zaza em “Memórias de uma moça bem-comportada”, volume autobiográfico publicado em 1958, no qual chama a amiga de Elizabeth Mabille. “A vivacidade e a independência de Zaza subjugavam-me”, escreveu. Em “Memórias”, Beauvoir conta que, depois de morta, Zaza lhe aparecia em sonho, “toda amarela sob o chapeuzinho cor-de-rosa, e me olhava com reprovação”.

O romance finalmente chegou às livrarias francesas no ano passado por decisão de Sylvie Le Bon de Beauvoir, filha adotiva da autora. Lebon escolheu o título “As inseparáveis”, porque era assim que uma das professoras das meninas as chamava na infância.

‘Teorias’ sobre ineditismo

Le Bon conheceu Beauvoir em 1960, quando tinha 17 anos. Tornou-se íntima dela e de seu companheiro, o filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980), e foi adotada em 1980 porque Beauvoir queria que ela cuidasse de seu espólio literário e publicações póstumas. Ela ainda estava focada na edição da correspondência, mas agora pretende se dedicar à ficção inédita da mãe.

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Boatos tentam explicar por que Beauvoir nunca publicou o romance. Um deles afirma que Sartre não gostou do livro e recomendou à companheira mantê-lo na gaveta. Outro insinua que Beauvoir preferiu não melindrar Sartre , que tinha suas diferenças com Merleau-Ponty. Os três começaram amigos e até fundaram, juntos, a revista “Les Temps Moderns”, em 1944, mas, nos anos seguintes, Sartre e Merleau-Ponty se afastaram depois que, diferentemente do companheiro de Beauvoir, o ex-namorado de Zaza se tornou um crítico do comunismo soviético. Em entrevista ao GLOBO, por e-mail, Le Bon desmentiu os boatos:

— Essas “teorias” são fantasiosas. Depois de “Os mandarins”, Simone queria escrever um texto autobiográfico, mas acabou ficcionalizando a história de sua amizade com Zaza. Guardou o romance sem nem mesmo lhe dar um título e começou a escrever “Memórias de uma moça bem-comportada”. Foram, portanto, razões puramente literárias, relativas ao gênero e não à qualidade, que determinaram sua decisão, a escolha da autobiografia em vez da ficção. Sartre, ciente da vontade de Simone de Beauvoir de narrar sua juventude, achava o romance insatisfatório desse ponto de vista. E ela concordava.

A filosofa francesa Simone de Beauvoir e sua filha adotiva (e executora de seu espólio literário) Sylvie Le Bon de Beauvoir Foto: Collection Sylvie Le Bon de Beauvoir
A filosofa francesa Simone de Beauvoir e sua filha adotiva (e executora de seu espólio literário) Sylvie Le Bon de Beauvoir Foto: Collection Sylvie Le Bon de Beauvoir

Le Bon lembra ainda que Beauvoir deixou outras ficções na gaveta , como “Quando o espiritual domina”, reunião de cinco histórias interligadas escritas entre 1937 e 1938, mas só publicada em 1979 por pressão de amigos. Esses contos foram as primeiras peças de ficção que ela se atreveu a escrever. Um deles, “Anne”, narra a história de Zaza.

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Em “As inseparáveis”, Sylvie, a narradora, recorda em detalhes sua amizade com Andrée, que ela conheceu num colégio para meninas da elite francesa: “Andrée era sem dúvida uma dessas crianças-prodígio cuja vida é contada depois em livros”. Nascida numa família de católicos militantes, Andrée também tinha muita fé. Na adolescência, os pais já a haviam proibido de se envolver com um rapaz de uma família menos influente e de mãe judia. Enquanto Sylvie, de origem mais modesta, pôde ingressar na faculdade de filosofia, o destino de Andrée era o casamento.

Experiência avassaladora

Professora de filosofia na Universidade de Oxford e autora de “Simone de Beauvoir: uma vida” (Crítica), Kate Kirkpatrick afirma que “a amizade com Zaza foi um dos muitos relacionamentos significativos que contribuíram para moldar o feminismo” da autora de “O segundo sexo” , que até chega a mencionar anedotas da vida da amiga em seu livro mais influente.

— Como a família de Zaza era rica e católica, esperava-se que ela se casasse com alguém que lhes trouxesse vantagens materiais e espirituais — explica Kirkpatrick, que aponta ainda como o pensamento de Beauvoir sobre Deus, fé e religião aparece em “As inseparáveis”. — O livro tem passagens sobre o problema do mal e a fusão de desejo e pecado, que a tradição cristã chama de odium corporis . Beauvoir escreveu sobre como as moças cristãs eram “treinadas” para esquecer seus próprios corpos.

Sylvie Le Bon lembra que Beauvoir preferiu não contar à amiga quando perdeu a fé, aos 14 anos, para não chocá-la.

— Simone foi capaz de perceber, no doloroso caso de sua amiga, o poder opressor e alienante da religião e seus efeitos devastadores, principalmente quando está a serviço de interesses de classe, o que ela chamou de “espiritualismo” — afirma. — A morte de Zaza foi uma experiência avassaladora e inesquecível para Simone. Ela queria fazer justiça à amiga, resgatá-la da morte e do esquecimento com a magia da literatura.

Serviço:

“As inseparáveis”

Autora: Simone de Beauvoir. Tradução: Ivone Benedetti. Editora : Record. Páginas: 128. Preço: R$ 39,90.