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Cultura Celina

Tia Má: ‘Essa conversa de que amor não tem cor é falácia’

Prestes a lançar o livro ‘Como se livrar de um relacionamento ordinário’, a jornalista diz que a dificuldade da mulher negra em receber afeto é herança da escravidão e fala da importância de se ter alguém com ‘corpo preto e roliço’ no posto de musa de bloco carnavalesco
Maíra Azevedo, a Tia Má Foto: Divulgação / Magali Moraes
Maíra Azevedo, a Tia Má Foto: Divulgação / Magali Moraes

O sonho da jornalista, humorista e youtuber Maíra Azevedo, conhecida por Tia Má, é abrir uma escola de princesas. Em vez de ensinar a ser bela, recatada e do lar, daria lições sobre a Lei Maria da Penha, assédio, independência emocional e financeira.

Dona do bordão “tire o sapatinho e bote o pé no chão”, a baiana arretada começou dando conselhos em vídeos irreverentes. Se viu rodeada de “sobrinhos”. Hoje, aos 39 anos, é sensação na internet (são 85 mil inscritos no canal no YouTube e 500 mil seguidores no Facebook) tratando de autoestima, racismo e gordofobia. É conselheira sentimental do programa de Fátima Bernardes e, em março, lança o livro “Como se livrar de um relacionamento ordinário” (editora Agir), com prefácio da jornalista Maju Coutinho.

Nesta conversa, a musa do Bloco da Preta, que já foi ameaçada de morte e chamada de macaca, mostra por que representa milhares de mulheres de “corpo roliço e preto”.

O livro é um manual contra roubadas amorosas? Como surgiu a ideia de escrevê-lo?

Não tem como não cair em roubadas, elas ganham novas roupagens. O livro serve para identificá-las. Já me submeti a homem que se incomodava por eu ganhar mais, ter carro e ele não. Já costumava reunir minhas postagens, mas o racismo faz a gente duvidar da gente, sabe? Pensava: será faço um livro? Alguém vai querer ler? Aí, a editora me convidou.

Na obra, você afirma que fala a todos que se identificam com o lado feminino da relação. Como assim?

LGBTs me sinalizaram que essas coisas não acontecem só em relacionamento hétero. Quem tem postura feminina na relação é mais vulnerável. O gay afeminado é mais discriminado que o que parece heteronormativo. A sociedade é misógina.

Você diz coisas bem óbvias nas páginas. Ainda é preciso?

Há mulheres que nem sabem o que é machismo. Acham bonitinho deixar de cortar o cabelo porque o paceiro não gosta. Há também aquelas que acham que têm que fazer tudo que o cara quer na cama se não ela vai procurar outra na rua. Ou seja, muitas mulheres ainda não têm informação.

Por que é importante falar com as mulheres sobre afeto?

Se o homem tem um comportamento adequado com a parceira, logo é chamado de pau mandado pelos amigos. Parece que para provar que é macho tem que pegar outra. A mulher é cobrada para ser madura diante de uma traição e casar, se passou dos 30. Homem com 30 é considerado novo para casar. A gente continua infantilizando os homens, e eles se aproveitam disso para ter comportamento de moleque.

A situação é ainda mais perversa para as negras?

Se mulher já é hostilizada, a negra é hostilizada e preterida por negros e brancos. Essa conversa de que o amor não tem cor é falácia. Sempre teve: é branco, nobre e europeu, como nos contos de fada, com a princesa nórdica. Enquanto isso, a mulher preta batalhava para sobreviver. Nunca lutamos para trabalhar,  como dizem por aí, a gente luta é para descansar. Mulher preta nunca é chamada de princesa, mas de negona gostosa. É a mulher do fetiche, da bunda grande, para ir para a cama. Não à toa, somos a maioria das chefes de família sozinhas. É novidade ter mulher preta, gorda e nordestina falando de autoestima. Sou o tipo de mulher que ninguém quer ver ou ter ao lado. Então, digo às minhas iguais que não precisamos aceitar qualquer coisa.

É libertador para a mulher fora dos padrões de beleza estabelecidos falar sobre empoderamento...

Essa coisa de fora do padrão está errada. Eu sou o padrão! Mulher preta que veste 44 ou 46 é a cara deste país, a maioria. Mesmo assim, ligamos a TV e não nos vemos. Falar de autoestima com a cara e o corpo que tenho é salvar vidas. Quando comecei, fui criticada por colegas jornalistas e pensei em parar. Quando comprei minha primeira bolsa de grife e desfilava pelo shopping, uma mulher me seguiu. Pensei que ela estava achando que eu havia roubado a bolsa, mas queria me abraçar eu por ser a Tia Má. Tinha me reconhecido. Tenho relatos de mulheres que enfrentaram a violência ou não sucumbiram depois de assistirem aos meus vídeos.

O que significa uma mulher “de corpo roliço e preto”, como você já se definiu, ser musa do Bloco da Preta?

Um corpo que antes era escondido agora está à mostra, oferecendo e recebendo afeto. A mulher negra não foi educada para receber amor. Até hoje, quando demonstram carinho por mim, fico constrangida. A escravidão nos ensinou que afeto era secundário. O negro não tinha direito de viver entre os seus. Era estratégia de sobrevivência não demonstrar que éramos da mesma família para não nos separarem. Muita gente se surpreende quando digo que tenho um companheiro. O normal é mulheres como eu estarem sozinhas. Muitas se calam para não perder os companheiros ou sequer tiveram orgasmo porque não conseguem dizer para eles que não gostam de como fazem sexo.

Como construiu sua autoestima?

Meus “ex” me ajudaram. Não posso ser uma merda se tanta gente se interessou por mim. Essa perspectiva me fez me olhar com mais afeto. Claro que tem vezes que choro, acho que sou uma fraude, me olho no espelho e me acho ruim, mas o saldo final é positivo. Me tornar mãe foi fundamental. Ensino autoestima ao meu filho ( Aladê Koman, que significa Dono da Coroa, de 11 anos ), então, tenho que incentivar isso em mim também.

Já foi chamada de agressiva por ser enfática contra o racismo?

De agressiva, raivosa, lésbica. Descredibilizar a mulher é estratégia antiga. Quando discuto com homem, chamo logo de histérico ou digo "só podia ser homem para fazer uma coisa dessas". Faço isso para eles entenderem como são perversos. Mas alguns não entendem...

Na sua infância, como foi a questão da representatividade?

Sonhava em ser paquita. Mas para negras da minha geração as referências eram ou Tia Anastácia, que vivia na cozinha como serviçal de uma família branca, o Tião Macalé, bêbado desdentado e escada para piadas, Saci Pererê, o inconveniente, ou o Mussum, que nunca entendia nada. Imagina o efeito disso numa criança negra?

Qual foi o momento mais difícil da sua vida?

A morte da minha avó. Eu saio da órbita do que as pessoas esperam de uma mulher preta. Nenhuma mulher da minha família foi empregada doméstica, nem eu fui a primeira a me formar. Nunca passei fome. Existe um fetiche pelo sofrimento do povo preto.

Qual sua opinião sobre relacionamento interracial?

Nunca tive, mas pode acontecer. A gente vive num estado de tensão racial constante. Numa relação interracial, em algum momento, quem detém os privilégios vai colocar isso no jogo. Mas não sou fiscal de relação alheia.