Cultura Celina

Virginie Despentes: 'O tempo dos homens que se submetem a idiotas está no fim'

Ex-prostituta, a autora de 'Teoria King Kong' destaca o desamparo de um roqueiro de meia-idade em 'A vida de Vernon Subutex', best-seller francês recém-lançado no Brasil
A escritora francesa Virginie Despentes, autora de 'A vida de Vernon Subtex' Foto: Divulgação
A escritora francesa Virginie Despentes, autora de 'A vida de Vernon Subtex' Foto: Divulgação

RIO — Aos 15 anos, a francesa Virginie Despentes foi internada à força em um hospital psiquiátrico. Aos 17, foi atacada, junto com uma amiga, por três homens armados com um rifle. Aos 20, se prostituía para pagar as contas. Aos 23, escandalizou a cena literária francesa com “Baise-moi” (“Me fode”), um romance em que duas mulheres vingativas matam homens. Em 2000, dirigiu a adaptação cinematográfica do romance. Com cenas de sexo não simulado protagonizadas por atrizes pornô, “Baise-moi” foi censurado na França.

Virginie completou 50 anos em junho e mantém o hábito de escandalizar as letras francesas. Em 2006, publicou “Teoria King Kong”, manifesto feminista para as “mulheres feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal comidas, as incomíveis, as histéricas, as psicóticas, para todas as excluídas do mercado da boa moça”. Os editores franceses se recusaram a estampar a palavra “feminista” na capa porque, na época, “feminismo não vendia”. No Brasil, a obra foi publicada pela N-1 Edições.

Em 7 de janeiro de 2015, no dia dos ataques terroristas ao jornal satírico “Charlie Hebdo” , Virginie lançou o primeiro volume da trilogia “A vida de Vernon Subutex”, que acompanha as desventuras de um roqueiro cinquentão despejado de seu apartamento e largado pelas ruas de uma Paris abandonada pelo Estado de bem-estar social. Best-seller na França e finalista do prêmio Man Booker International em 2018, o livro foi lançado recentemente no Brasil.

Em entrevista ao GLOBO, por e-mail, Despentes conta por que deu voz a um protagonista masculino e defendeu a pornografia como “educativa”.

Seus livros geralmente têm protagonistas femininas. Por que, desta vez, você resolveu escalar um masculino?

O roqueiro que não é mais adolescente representa um aspecto da cultura ocidental que me interessa bastante. Quando percebi que “Vernon Subutex” seria um romance também sobre a cultura do rock, me pareceu óbvio que o protagonista deveria ser um cara.

E por que abordar a precarização da sociedade francesa após os anos 2000?

Morei na Espanha por três anos e, quando voltei a Paris, em 2010, me impressionei ao perceber que todos estavam deprimidos. Não pessoalmente, mas política, cultural e socialmente deprimidos. E isso foi antes dos ataques terroristas ao “Charlie Hebdo” e ao Bataclan (13 de novembro de 2015). Escrevi o romance nesse espiral de negatividade, com a impressão de que todos estávamos fodidos e convencidos de que o pior estava por vir.

Um dos personagens do livro diz que “tudo é feito para que o macho francês se sinta desvalorizado”. O que seria este sentimento?

A esquerda pode ter perdido a guerra econômica e política para a direita, mas venceu a guerra da imaginação. Está vindo aí uma geração para quem essa história de virilidade, gêneros binários e exploração dos recursos naturais até a destruição do meio ambiente não faz sentido. O macho é o homem que adora se submeter — ao pai, ao general, ao ditador. O tempo dos homens que querem se submeter a idiotas está no fim. Os homens também têm muito a ganhar com as mudanças culturais e sociais. A revolução feminista está acontecendo. Estou contente por testemunhá-la. É aberrante que sejamos espancadas só por termos nascido no sexo feminino.

Capa de 'A vida de Vernon Subutex', de Virginie Despentes Foto: Divulgação
Capa de 'A vida de Vernon Subutex', de Virginie Despentes Foto: Divulgação

Como você avalia a representação das mulheres “excluídas do mercado da boa moça” na literatura?

Especialmente nos clássicos da literatura, as personagens femininas são imaginadas por homens; portanto, são mulheres cujas qualidades são definidas na relação com os homens. Nos últimos 20 anos, a representação da mulher na literatura, no cinema e TV se diversificou muito. Ela não é mais reduzida à sedução, à vida doméstica ou à maternidade. Há muitas escritoras fazendo um excelente trabalho ao levar as mulheres excluídas do mercado da boa moça para a literatura, como Violette Leduc, Cathy Acker, Sapphire e Kate Tempest.

Você fala muito sobre o estupro que sofreu em 'Teoria King Kong'. Como combater a cultura do estupro?

Falando sobre isso. Depois do #MeToo, as mulheres perceberam que se você foi estuprada, não foi por causa da sua roupa ou da sua atitude. Foi porque você é uma mulher. Só por isso.

Parte do movimento feminista se opõe à prostituição. Você já trabalhou como prostituta e já afirmou que é uma ocupação menos degradante do que outras atividades proletárias...

Defendo a legalização da prostituição, que ouçamos as profissionais do sexo e façamos leis de acordo com as reivindicações delas.

As feministas divergem também sobre pornografia. Há quem diga que o pornô apresenta uma concepção deturpada do sexo.

Toda pornografia é educativa. Inclusive para os adultos, porque estimula a imaginação. Precisamos parar de censurar a pornografia e diversificá-la para educar nossa libido.